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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Carla Teresa


Ela queria tão apenas descer numa estaçãozinha e chamar-se Maria da Graça ou Constança, ou outro nome, nem que fosse Vanessa ou Tânia. Um nome que não o que lhe tinha sido aposto por baptismo e lhe acordaria em cada instante ardores de feridas dilaceradas por pedras de caminhos conhecidos.
Queria ficar num apeadeiro, alugar um quartinho numa pensão barata, e andar rumando ruazinhas, espreitada por mulheres assomadas de esguelha em janelas com cortinazinhas de rendas tricotadas em noites de sonhos, à luz de luas cheias. Mulheres paradas no destino como ela.
Ajeitou o saco onde trazia a caixinha dos pregos. Tinha-os conseguido no tamanho certo, e sabia que seria um em cada dedo, e se espichasse sangue ela o lamberia antes que espetasse o segundo, devagarinho, apenas um nadinha através da pele e ainda assim atingiria um vasito ou outro.
Sabia. Tinha-se documentado.
Sentou-se direita no banco da automotora e a paisagem deslizou como fazia antes, como fazia desde há os dias em que ela descia numa estação e comia uma bucha, nada mais que um pãozinho lambuzado com manteiga e um copo de leite morno aquecido em cafeteiras com ar duvidoso.
E seguia viagem na próxima automotora.
Mais uns dias, sonhava ela no embalo dos carris, e estaria onde ninguém lhe ouviria contar de poiais caiados de branco e uma pedra e os tamancos a subirem já cansados na hora de ainda nem ser dia, e voltavam já o sol descido, que em dias de inverno o sol nem esperava para que fosse ocaso, ia-se por dentro das nuvens e ficava aquele dia pesado e quando o pé poisava na pedra do degrau era noite desde há muito.
Ninguém a ouviria contar ou, ouvindo, nem a entenderia, e ela explicaria com aquele distender de rugas entre os olhos como se fora sinal de estar fazendo esforço, e no entanto era ela contando num monólogo nunca satisfeito ainda que soubesse que nunca mais teria ouvinte, ela que andara quilómetros uns atrás de outros para puder ter a certeza que ninguém seria capaz de entender o que dissesse.
Que talvez assim um dia esquecesse à força de nem ter quem a escutasse.
O que ela desejava era o silêncio.
A sua voz a ser engolida, a descair-se para o fundo de onde lhe vinham as lembranças e lhe espichavam rodilhos de palavras que um dia haviam de arredondar-se no tamanho certo para atravessarem esófago e estomago e intestinos, e serem finalmente expulsas pelo circular do esfíncter, e nunca mais ela a pensar em mares de sul, ou navios, ou terras onde tinha vivido.
Esqueceria finalmente a dor de ter regressado, e a dor de uma dia ter ido e nunca ter sido como tinha desejado. Que ela imaginava como seria ir, imaginava muito antes, ainda no tempo em que mal se habituara a equilibrar no nariz os óculos que lhe receitara o doutor.
A menina tem miopia congénita, dissera o homem barrigudo a cheirar a pasta dentífrica da couto, e a mãe comprara-lhe as lentes receitadas e enfiara-lhas nuns aros negros que lhe desfeavam o rostinho bochechudo com laivos de ser pouco inteligente, ou ao menos não ser nada dado às matemáticas.
Foi num dia em que vinham de terem ido ver montras, ou de terem ido à modista, ela teria menos de catorze e já usava um pedaço de pano informe a amparar-lhe as mamas que cresceram cedo até serem assim desmesuradas, a direita mais descaída do que a outra. Vá que não tinha barriga, que gorda, ela era apenas naquela cara de anjo com uma covinha no queixo. No resto era magra e até seria elegante não fora aquele peito enorme.
Ou teria sido no dia em que tinham ido consultar o médico dos olhos, que era como a mãe dizia: hoje tens consulta dos olhos.
Num dia em que vinham sabe lá ela de onde, mas recorda-se que disse: mãe preciso de um caderno quadriculado, e a mãe, escusadamente, assim como quem tem aquilo entalado e lhe dá em náuseas de calar-se, como se lhe desse até em insónias por falta de um desabafo, a mãe dela dada a enormes discursos nos jantares de páscoa e consoada, ou por uns anos em que fizesse um lanche com amigas.
A mãe despejou sem perder o tom de voz doce e sereno que era o mesmo com que orava na igreja.
Disse com estas mesmíssimas palavras: gastas papel demais para tão pouco talento.
A mãe dela adorava dizer coisas que entendia serem desafios. Fazia isso, assim, inesperada.
Foi desse modo que soube que a sua apetência pelos números nunca se compararia a nada que fosse sequer suficiente, e esse caderno quadriculado durou até terminar o liceu, um número cabalístico de serem sete até concorrer a um lugar num banco, ou a um escritório de advogado, ou fazer admissão a uma faculdade e ir para o puto o que nem pensar que o pai dela achava que ter o sétimo do liceu era suficiente e com esta pecha de nem ser boa a matemática, letras nem pensar, que para uma menina ser escritora era fora de questão e nem advogada.
Talvez tivesse sido melhor se tivesse entrado no magistério, remocaria o pai quando estavam sentados à mesa, mas morreu muito antes até de ela ter dito que não queria nunca ser professora, que se fosse alguma coisa seria médica ou enfermeira, ou seria escritora, atreveu-se, e o pai acentuaria aquele: isso nunca! e calaria o resto da refeição até ser servida a sobremesa e só depois diria, levantando-se, e nunca ninguém sabia o que o pai dela fazia depois que saía a porta do quintal: falamos melhor no que farás se acabares este ano o liceu.
Eles colocaram sempre uma dúvida naquilo que ela seria capaz.
Mas nem o pai dela disse, nem ela reprovou, nem sequer no sexto em que teve negativas a desenho e a filosofia e numa outra que nem se lembra o nome dessa disciplina. Mas a matemática teve um quinze, e a mãe nem disse que bom que eu estava enganada, não disse mais nada que não fosse: olha que ainda perdes a essas disciplinas, Carla Teresa. Era Natal e ela detestava que lhe dissessem os dois nomes, e nessa férias, a mãe obrigou-a a preparar os pequenos-almoços lá em casa. Todas as manhãs ovos mexidos e restos de carne assada se sobrasse do jantar, e queijo, e o diabo a quatro, e nem a loiça podia ser lavada pelo mainato, lava-a ela obrigada por ter tido aquelas negativas.
O pai morreu no mês seguinte.
A mãe vestiu-se de negro, mas não deve ter tirado a cinta que usava por debaixo das saias travadas, e não deixou de usar saltos altos, que nem em casa punha umas chinelas rasas, umas sabrinas, e nunca andava descalça, apenas na areia da praia onde posava quase nua num biquíni encarnado que trouxera numa viagem rara à capital. Esse, sim, abandonou-o desde que ficou viúva. Trocou-o por um em cores de luto cerrado.

Havia de encontrar, sim, uma aldeia pequenina onde ficasse até varrer a vida completamente da memória, esquecer-se até que era Carla Teresa.

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4 comentários:

Você e seus personagens tão subliminares, tão intensos, tão bordadas em nuanças de vida. Sempre leio seus textos num fôlego só. Sempre encontro uma melancolia, um alerta, uma conformação, uma saudade. Enxergo neles uma solidão bem grande.

Minha amiga,

Este texto fez-me voar para um punhado de palavras seguidas de palavras que outrora digitei. Pareceu-me que a sua "Carla Teresa" compreenderia o sentido, caso ele exista nestas palavras.

"São de fio de lã de vidro feitas as amarras que a sustêm. Estática e indolente protege-se assim do frio das casas que habita e dos sons das gentes que a espiam. Pálida de sonhos e fantasias agarra-se ao sonho de fruir de hercúlea vontade para esboroar esse aglomerado que lhe tolhe a alma ainda que com a dorida consciência de que a sílica sempre se volatiliza e os grãos de areia são capazes de lograr a pior das cegueiras. Aspira cada milésimo de segundo da vida que lhe escorre por entre os dedos e tenta num esforço titânico em vão a arraigada sabedoria de demudar as raízes ao sentimento e plantá-las de novo e fertilizá-las com o húmus da verdade que antes de a outra coisa qualquer serve a nós mesmos. A mentira da aparência insiste em escavar fossos himalaicos de insaciável descontentamento e em cada gesto delata-se e bane quem a relata, sem o saber, quem lhe estende a mão ao que foi um derradeiro pedido de socorro. Mas as palavras com que a vestem ficam-lhe curtas e ela prende-as de ponta a ponta no estendal e estica mas não há mais papel e o mata-borrão espreita implacável. Num último resfolgar planeia desferir o golpe final rasgando as palavras mas o pano cai e a nudez da alma despoja-a do seu ser e a dor de ver que a casinha da árvore está vazia dos sonhos que nela plantou devolve-a à lã de vidro de amarras feito. O fio de seda também existe mas nem todas as lagartas se transformam em borboletas."

Lindo e profundo; com 'quês' clariceanos, pertubadores. A Cinthia definiu muito bem em seu comentário: ronda aí a solidão, também as frustrações e o anonimato de uma moça cujo talento nunca fora reconhecido, tampouco por ela, talvez desalentada pelos outros olhares crueis e indiferentes.

Até a próxima, Maria!
Lohan.

Personificação na nostalgia, na melancolia, na solidão, por entre uma sofreguidão assaz, devoradora, capaz, quanto tão aterradora!
um bem haja...Réjo Marpa.

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