Ela
queria tão apenas descer numa estaçãozinha e chamar-se Maria da Graça ou
Constança, ou outro nome, nem que fosse Vanessa ou Tânia. Um nome que não o que
lhe tinha sido aposto por baptismo e lhe acordaria em cada instante ardores de
feridas dilaceradas por pedras de caminhos conhecidos.
Queria ficar num
apeadeiro, alugar um quartinho numa pensão barata, e
andar rumando ruazinhas, espreitada por mulheres assomadas de esguelha em
janelas com cortinazinhas de rendas tricotadas em noites de sonhos, à luz de
luas cheias. Mulheres paradas no destino como ela.
Ajeitou
o saco onde trazia a caixinha dos pregos. Tinha-os conseguido no tamanho certo,
e sabia que seria um em cada dedo, e se espichasse sangue ela o lamberia antes
que espetasse o segundo, devagarinho, apenas um nadinha através da pele e ainda
assim atingiria um vasito ou outro.
Sabia.
Tinha-se documentado.
Sentou-se
direita no banco da automotora e a paisagem deslizou como fazia antes, como
fazia desde há os dias em que ela descia numa estação e comia uma bucha, nada
mais que um pãozinho lambuzado com manteiga e um copo de leite morno aquecido
em cafeteiras com ar duvidoso.
E
seguia viagem na próxima automotora.
Mais
uns dias, sonhava ela no embalo dos carris, e estaria onde ninguém lhe ouviria
contar de poiais caiados de branco e uma pedra e os tamancos a subirem já
cansados na hora de ainda nem ser dia, e voltavam já o sol descido, que em dias
de inverno o sol nem esperava para que fosse ocaso, ia-se por dentro das nuvens
e ficava aquele dia pesado e quando o pé poisava na pedra do degrau era noite
desde há muito.
Ninguém
a ouviria contar ou, ouvindo, nem a entenderia, e ela explicaria com aquele
distender de rugas entre os olhos como se fora sinal de estar fazendo esforço,
e no entanto era ela contando num monólogo nunca satisfeito ainda que soubesse
que nunca mais teria ouvinte, ela que andara quilómetros uns atrás de outros
para puder ter a certeza que ninguém seria capaz de entender o que dissesse.
Que
talvez assim um dia esquecesse à força de nem ter quem a escutasse.
O
que ela desejava era o silêncio.
A
sua voz a ser engolida, a descair-se para o fundo de onde lhe vinham as
lembranças e lhe espichavam rodilhos de palavras que um dia haviam de
arredondar-se no tamanho certo para atravessarem esófago e estomago e
intestinos, e serem finalmente expulsas pelo circular do esfíncter, e nunca
mais ela a pensar em mares de sul, ou navios, ou terras onde tinha vivido.
Esqueceria
finalmente a dor de ter regressado, e a dor de uma dia ter ido e nunca ter sido
como tinha desejado. Que ela imaginava como seria ir, imaginava muito antes,
ainda no tempo em que mal se habituara a equilibrar no nariz os óculos que lhe
receitara o doutor.
A
menina tem miopia congénita, dissera o homem barrigudo a cheirar a pasta
dentífrica da couto, e a mãe comprara-lhe as lentes receitadas e enfiara-lhas
nuns aros negros que lhe desfeavam o rostinho bochechudo com laivos de ser
pouco inteligente, ou ao menos não ser nada dado às matemáticas.
Foi
num dia em que vinham de terem ido ver montras, ou de terem ido à modista, ela
teria menos de catorze e já usava um pedaço de pano informe a amparar-lhe as
mamas que cresceram cedo até serem assim desmesuradas, a direita mais descaída
do que a outra. Vá que não tinha barriga, que gorda, ela era apenas naquela
cara de anjo com uma covinha no queixo. No resto era magra e até seria elegante
não fora aquele peito enorme.
Ou
teria sido no dia em que tinham ido consultar o médico dos olhos, que era como
a mãe dizia: hoje tens consulta dos olhos.
Num
dia em que vinham sabe lá ela de onde, mas recorda-se que disse: mãe preciso de
um caderno quadriculado, e a mãe, escusadamente, assim como quem tem aquilo
entalado e lhe dá em náuseas de calar-se, como se lhe desse até em insónias por
falta de um desabafo, a mãe dela dada a enormes discursos nos jantares de
páscoa e consoada, ou por uns anos em que fizesse um lanche com amigas.
A
mãe despejou sem perder o tom de voz doce e sereno que era o mesmo com que
orava na igreja.
Disse
com estas mesmíssimas palavras: gastas papel demais para tão pouco talento.
A
mãe dela adorava dizer coisas que entendia serem desafios. Fazia isso, assim,
inesperada.
Foi
desse modo que soube que a sua apetência pelos números nunca se compararia a
nada que fosse sequer suficiente, e esse caderno quadriculado durou até terminar
o liceu, um número cabalístico de serem sete até concorrer a um lugar num
banco, ou a um escritório de advogado, ou fazer admissão a uma faculdade e ir
para o puto o que nem pensar que o pai dela achava que ter o sétimo do liceu
era suficiente e com esta pecha de nem ser boa a matemática, letras nem pensar,
que para uma menina ser escritora era fora de questão e nem advogada.
Talvez
tivesse sido melhor se tivesse entrado no magistério, remocaria o pai quando
estavam sentados à mesa, mas morreu muito antes até de ela ter dito que não
queria nunca ser professora, que se fosse alguma coisa seria médica ou
enfermeira, ou seria escritora, atreveu-se, e o pai acentuaria aquele: isso
nunca! e calaria o resto da refeição até ser servida a sobremesa e só depois
diria, levantando-se, e nunca ninguém sabia o que o pai dela fazia depois que
saía a porta do quintal: falamos melhor no que farás se acabares este ano o
liceu.
Eles
colocaram sempre uma dúvida naquilo que ela seria capaz.
Mas
nem o pai dela disse, nem ela reprovou, nem sequer no sexto em que teve
negativas a desenho e a filosofia e numa outra que nem se lembra o nome dessa
disciplina. Mas a matemática teve um quinze, e a mãe nem disse que bom que eu
estava enganada, não disse mais nada que não fosse: olha que ainda perdes a
essas disciplinas, Carla Teresa. Era Natal e ela detestava que lhe dissessem os
dois nomes, e nessa férias, a mãe obrigou-a a preparar os pequenos-almoços lá
em casa. Todas as manhãs ovos mexidos e restos de carne assada se sobrasse do
jantar, e queijo, e o diabo a quatro, e nem a loiça podia ser lavada pelo
mainato, lava-a ela obrigada por ter tido aquelas negativas.
O
pai morreu no mês seguinte.
A
mãe vestiu-se de negro, mas não deve ter tirado a cinta que usava por debaixo
das saias travadas, e não deixou de usar saltos altos, que nem em casa punha
umas chinelas rasas, umas sabrinas, e nunca andava descalça, apenas na areia da
praia onde posava quase nua num biquíni encarnado que trouxera numa viagem rara
à capital. Esse, sim, abandonou-o desde que ficou viúva. Trocou-o por um em
cores de luto cerrado.
Havia
de encontrar, sim, uma aldeia pequenina onde ficasse até varrer a vida
completamente da memória, esquecer-se até que era Carla Teresa.
4 comentários:
Você e seus personagens tão subliminares, tão intensos, tão bordadas em nuanças de vida. Sempre leio seus textos num fôlego só. Sempre encontro uma melancolia, um alerta, uma conformação, uma saudade. Enxergo neles uma solidão bem grande.
Minha amiga,
Este texto fez-me voar para um punhado de palavras seguidas de palavras que outrora digitei. Pareceu-me que a sua "Carla Teresa" compreenderia o sentido, caso ele exista nestas palavras.
"São de fio de lã de vidro feitas as amarras que a sustêm. Estática e indolente protege-se assim do frio das casas que habita e dos sons das gentes que a espiam. Pálida de sonhos e fantasias agarra-se ao sonho de fruir de hercúlea vontade para esboroar esse aglomerado que lhe tolhe a alma ainda que com a dorida consciência de que a sílica sempre se volatiliza e os grãos de areia são capazes de lograr a pior das cegueiras. Aspira cada milésimo de segundo da vida que lhe escorre por entre os dedos e tenta num esforço titânico em vão a arraigada sabedoria de demudar as raízes ao sentimento e plantá-las de novo e fertilizá-las com o húmus da verdade que antes de a outra coisa qualquer serve a nós mesmos. A mentira da aparência insiste em escavar fossos himalaicos de insaciável descontentamento e em cada gesto delata-se e bane quem a relata, sem o saber, quem lhe estende a mão ao que foi um derradeiro pedido de socorro. Mas as palavras com que a vestem ficam-lhe curtas e ela prende-as de ponta a ponta no estendal e estica mas não há mais papel e o mata-borrão espreita implacável. Num último resfolgar planeia desferir o golpe final rasgando as palavras mas o pano cai e a nudez da alma despoja-a do seu ser e a dor de ver que a casinha da árvore está vazia dos sonhos que nela plantou devolve-a à lã de vidro de amarras feito. O fio de seda também existe mas nem todas as lagartas se transformam em borboletas."
Lindo e profundo; com 'quês' clariceanos, pertubadores. A Cinthia definiu muito bem em seu comentário: ronda aí a solidão, também as frustrações e o anonimato de uma moça cujo talento nunca fora reconhecido, tampouco por ela, talvez desalentada pelos outros olhares crueis e indiferentes.
Até a próxima, Maria!
Lohan.
Personificação na nostalgia, na melancolia, na solidão, por entre uma sofreguidão assaz, devoradora, capaz, quanto tão aterradora!
um bem haja...Réjo Marpa.
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