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domingo, 23 de dezembro de 2012

Últimas palavras no voo 676


Se agora fossem seus últimos minutos na terra, o que você faria? Eu peguei papel e caneta e comecei a escrever. Deveria estar nervoso como as pessoas a minha volta, mas por alguma razão eu estou tranquilo. Mesmo quando o avião começou a chocalhar mais forte, mesmo com a turbulência cada vez pior, mesmo com a sensação de montanha russa, eu estava tranquilo. Quero escrever, quero que meus últimos momentos fossem registrados com essa emoção, descrevendo esse sentimento de medo, que nada mais é do que medo do desconhecido. 
Mas agora que escrevo, não me sinto compelido a falar de meus sentimentos. Olho as pessoas ao meu redor, e as observo. Talvez esteja fugindo do inevitável e por isso olho os outros. 
Há um senhor em minha frente, do lado esquerdo, retira do seu bolso um pequeno livro. Pensei que fosse escrever também, mas reconheço o formato e identifico uma palavra Salmos. Sim, como era de se esperar em alguém que tenha fé. Que reze por todos nós nesse avião. 
Nunca fui religioso, a própria palavra religião me estremesse, não gosto. Não lembra-me nada de bom, apenas mortes, perseguições e poder. Não me culpem por pensar assim. Não é culpa minha. Se há alguém com culpa nisso, são aqueles que vieram antes de nós, que fizeram a nossa história. Judeus que perseguiram cristãos, cristãos que perseguiram muçulmanos. As eras de civilização na América Latina e na África em nome de um único deus. Uma perseguição e repressão de uma cultura apenas por uma crença em um deus. Não não peçam, que mesmo agora na hora de minha morte eu mude minha concepção sobre a história das religiões ou os atos cometido em nome de deus. 
Eu respeito, e olhando esse homem que reza, que lê os salmos nesses seus últimos momentos, eu respeito ainda mais esses seres, diferentes de mim, que rezam que tem fé. Essa força humana, não divina, HUMANA, de crer em algo, de acreditar mesmo que aquilo seja impossível. Se deus existe, ele existe tão somente por essa força humana de crer. E se ele é feito dessa força, creio que a humanidade é a verdadeira força divina, o Deus. 
A turbulência parece ser pior, algumas pessoas começaram a vomitar. O piloto pede calma ele ainda não nos informou do fim trágico, mas eu sei que vamos morrer. Não é porque sou pessimista, é porque conheço os sistemas e as pessoas. Consigo perceber no sorriso disfarçado da aeromoça, o medo. O modo como ela toca uma mão na outra e depois leva a mão direita a boa, para morder a unha. E quando percebe o nervosismo, busca o auxílio da mão esquerda, para segurar o nervosismo. É a razão e a emoção materializada nas mãos dessa jovem. Um jovem bonita e julgo pela aliança na mão direita, seja casada. Em poucos minutos ela voltará para a sua própria cabine ou banheiro para se acalmar. Então virá um homem, que tentará ser mais frio, para tentar nos acalmar, mas a verdade é que nem ele nem ela fora treinados o suficiente para isso, apenas tentam fazer o seu melhor.  
Afinal todos nós, passamos nossas vidas tentando fazer o nosso melhor, mas as coisas são bem diferentes do que imaginamos. Há coisas que simplesmente não dependem de nós, mas olhando esse rapaz que não deve ter mais do que 25 anos, creio que ele esta representando muito bem. Mesmo sabendo do fim, ele faz o seu melhor. No fim é o que podemos fazer, tentamos fazer o melhor que podemos. Agora percebemo que não há nada do que se envergonhar e meu maior exemplo esta nesse moço que sorri, faz piadas e diz que essas turbulências são normais. Embora ele disfarce bem, vejo a mentira em seus olhos, ele está com tanto medo quanto nós.  
Sim, não pensei que não estou com medo. Tanta coisa que tinha por fazer, mas fiz o que podia. É o meu consolo. O tempo que não ajudou. Levei mais de 5 anos para ter coragem para rever meu filho e mais 20 tentando encontrá-lo e convence-lo a me ver. E agora finalmente que estava indo ao seu encontro, eu deveria aproveitar esse momento para falar sobre mim, para deixar-lhe uma última mensagem, mas eu falei sobre mim quase toda a minha vida. Agora eu só queria escutá-lo, ver como ele cresceu, saber se tem namorada, se trabalha, se é religioso, eu queria saber como era o meu filho, que tipo de homem ele se tornou e apenas pedir lhe... 

Encontrei esse fragmento enquanto fazíamos as buscas nos destroços do voo 676, de São Paulo ao Acre. Mesmo com a ajuda da equipe de peritos não conseguimos identificar o autor da carta. Pedi aos responsáveis para ficar com os documentos e anotações que, pela letra, pertenciam a mesma pessoa. Por que fiz isso? não sei, talvez na esperança de conhecer melhor essa pessoa que bem poderia ser meu pai e que não conseguiu em vida, nem ver e nem pedir desculpas ao filho.

Sargento Moraes - 22/12/2012 - Dia do fim do mundo

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