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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Num Domingo


"Tentei me acostumar à ideia de recomeçar, entretanto no momento, impossível."
 
(Vicent Van Gogh, em carta para o irmão Théo)
 

De barriga cheia
 
Ouço Sunday Bloody Sunday tocada pelo Pearl Jam, gravada de um show ao vivo. Minha filha corre pela casa mexendo nas roupas que estavam dobradas e rasgando gibis. Ela me pede que arrume a roupinha da boneca dela.
Faço.
Mas continuo sentada na janela, esperando a música acabar, segurando a boneca pelo pescoço.
Esperar é o que minha filha nunca teve paciência de fazer, não a recrimino, não temos mais tempo.
Correu para sala e começou a brincar de escalada no sofá, com o cenho enrugado, mostrando a seriedade de suas ações.
Precisava lavar os agasalhos dela, pois dizem que está chegando uma frente fria da Argentina.
Mas não farei mais nada. Cansei desse frio que vem da rua, que sobe o prédio embalado e me acorda de madrugada toda encolhida, sozinha, abraçando o edredom. Minha filha tem todos aqueles bichos de pelúcia, adquiridos durante os seus 4 anos, mas continua dormindo somente com aquele travesseiro azedo de regurgito, saliva e pó.
A música acaba, mas decido ficar mais um pouco. Me deixar quieta, ouvindo o silêncio das ruas sem fluxo. Aqui e ali, às vezes um grito. Raramente uma risada.
Minha mão cede ao peso da boneca, deixando-a cair. Ela vai caindo, tecendo uma espiral. Vai lentamente. O som que ouço da queda causa uma sensação que nunca havia sentido antes. Êxtase.
O porteiro sai desesperado, depois joga a boneca no gramado ao lado. Olha pra cima. Ouço ele me xingar de vaca. Ou maluca. Acho que foi dos dois.
  
De tardinha

Sinto que a janela não suporta o meu peso. Vai cedendo devagar, abrindo caminho levemente, sem força nem precisão. Como a maleabilidade das pétalas.
Minha filha não pediu a boneca de volta. Mas já não a possui.
Continuou derramando suco no sofá, numa felicidade intensa e tão sem complicações que me senti sumir bem devagar, lembrando do que foi minha vida.
O vento frio bagunça meus cabelos negros enquanto a janela do meu apartamento se distancia.
Foi o único momento em que me senti verdadeiramente feminina.
Tive a impressão de ouvir um som meio oco, mas não sabia mais o que ouvia, sentia. Isso há alguns anos.
Não conversava mais com ninguém. Minha filha provavelmente achava que eu ainda não sabia falar. Mas ela falava direitinho, não sei como. Já que as crianças aprendem por imitação. Acho que imitava as propagandas de margarina sem gordura, pois era feliz.

De profundis

Foi um domingo como outro qualquer. Esse em particular terminou mais colorido. Deixei minha marca no mundo; pelo menos uma. Se encontra na rua do Passeio nº 4040. Estava lá na semana passada, foi o que ouvi dizer.
Minha filha não chegou a me ver, talvez só a marca que deixei na calçada. Nunca chegou a me ver como eu me via. Melhor.
Gostaria de me encontrar com ela novamente. Pelo menos pra avisar que eu limpei sua casa de bonecas, ficou tinindo. Digo isso sem falsa modéstia. Fiz a limpeza em um domingo um pouco mais triste que esse; precisei de muito sabão pra me convencer do que deveria fazer comigo.
A casa de bonecas ficou limpinha. Mas minha filha vai ter que crescer mais pra pegá-la de cima do armário. Coberta de pó.

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Homero Gomes
(Curitiba/PR, 1978). É escritor. Autor dos trabalhos ainda inéditos Sísifo Desatento (contos) – finalista do Sesc de Literatura edição 2007 –, Jamé Vu –publicado via internet – e Anjo Exilado (poemas) – que possui versão online no site português TriploV e Germina Literatura sob o título Solidão de Caronte. Está concluindo o romance Tempo do Corpo e a novela juvenil Paralelo Um. Colaborou com Rascunho, Cult, Germina Literatura, Cronópios, Ficções, entre outros. É editor de Jamé Vu (com postagens suspensas), espaço em que não apenas divulga suas produções literárias como também a de outros literatos, entre veteranos e estreantes, edita também do blogue juvenil Paralelo Um (com postagens suspensas), onde disponibiliza matérias, curiosidades e jogos para o público juvenil; é colunista dos sites Página Cultural , desde 2010; Mundo Mundano , com sua ficção, desde 2011; e Musa Rara , com notícias literárias e do mercado editorial, desde 2012; e da revista digital Samizdat, com sua ficção, desde 2012. Contato: homero.gomes@gmail.com
todo dia 14


1 comentários:

Bem construído.
Torci o nariz à barbárie implícita no primeiro texto. Não por ser um mau texto, mas por ser barbárie. Afinal, é apenas parte da explicação do todo.
Bom!

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