"Tentei me acostumar à ideia
de recomeçar, entretanto no momento, impossível."
(Vicent Van Gogh, em
carta para o irmão Théo)
De barriga cheia
Ouço Sunday Bloody Sunday tocada pelo Pearl Jam, gravada de um show ao
vivo. Minha filha corre pela casa mexendo nas roupas que estavam dobradas e
rasgando gibis. Ela me pede que arrume a roupinha da boneca dela.
Faço.
Mas continuo sentada na janela, esperando a música acabar, segurando a
boneca pelo pescoço.
Esperar é o que minha filha nunca teve paciência de fazer, não a
recrimino, não temos mais tempo.
Correu para sala e começou a brincar de escalada no sofá, com o cenho
enrugado, mostrando a seriedade de suas ações.
Precisava lavar os agasalhos dela, pois dizem que está chegando uma frente
fria da Argentina.
Mas não farei mais nada. Cansei desse frio que vem da rua, que sobe o
prédio embalado e me acorda de madrugada toda encolhida, sozinha, abraçando o
edredom. Minha filha tem todos aqueles bichos de pelúcia, adquiridos durante os
seus 4 anos, mas continua dormindo somente com aquele travesseiro azedo de
regurgito, saliva e pó.
A música acaba, mas decido ficar mais um pouco. Me deixar quieta, ouvindo
o silêncio das ruas sem fluxo. Aqui e ali, às vezes um grito. Raramente uma
risada.
Minha mão cede ao peso da boneca, deixando-a cair. Ela vai caindo,
tecendo uma espiral. Vai lentamente. O som que ouço da queda causa uma sensação
que nunca havia sentido antes. Êxtase.
O porteiro sai desesperado, depois joga a boneca no gramado ao lado. Olha
pra cima. Ouço ele me xingar de vaca. Ou maluca. Acho que foi dos dois.
De tardinha
Sinto que a janela não suporta o meu peso. Vai cedendo devagar, abrindo
caminho levemente, sem força nem precisão. Como a maleabilidade das pétalas.
Minha filha não pediu a boneca de volta. Mas já não a possui.
Continuou derramando suco no sofá, numa felicidade intensa e tão sem
complicações que me senti sumir bem devagar, lembrando do que foi minha vida.
O vento frio bagunça meus cabelos negros enquanto a janela do meu
apartamento se distancia.
Foi o único momento em que me senti verdadeiramente feminina.
Tive a impressão de ouvir um som meio oco, mas não sabia mais o que
ouvia, sentia. Isso há alguns anos.
Não conversava mais com ninguém. Minha filha provavelmente achava que eu
ainda não sabia falar. Mas ela falava direitinho, não sei como. Já que as
crianças aprendem por imitação. Acho que imitava as propagandas de margarina
sem gordura, pois era feliz.
De profundis
Foi um domingo como outro qualquer. Esse em particular terminou mais
colorido. Deixei minha marca no mundo; pelo menos uma. Se encontra na rua do
Passeio nº 4040. Estava lá na semana passada, foi o que ouvi dizer.
Minha filha não chegou a me ver, talvez só a marca que deixei na calçada.
Nunca chegou a me ver como eu me via. Melhor.
Gostaria de me encontrar com ela novamente. Pelo menos pra avisar que eu
limpei sua casa de bonecas, ficou tinindo. Digo isso sem falsa modéstia. Fiz a
limpeza em um domingo um pouco mais triste que esse; precisei de muito sabão
pra me convencer do que deveria fazer comigo.
A casa de bonecas ficou limpinha. Mas minha filha vai ter que crescer
mais pra pegá-la de cima do armário. Coberta de pó.
1 comentários:
Bem construído.
Torci o nariz à barbárie implícita no primeiro texto. Não por ser um mau texto, mas por ser barbárie. Afinal, é apenas parte da explicação do todo.
Bom!
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