Otávio Martins
Os meus sonhos costumam acontecer de forma desordenada, confusos. São quase sempre imagens soltas e desconexas. Quando acordo, preciso juntá-las, cuidadosamente, para tentar dar-lhes algum sentido.
Logo na primeira cena, eu estava do lado de fora do bar, com um copo na mão – não lembro qual era a bebida – sobre uma plataforma de cimento, bem acima do nível da calçada. A plataforma era protegida por um parapeito armado com uma estrutura de grossos canos de ferro, sobre o qual eu debruçara-me. Meu olhar, voltado para o lado esquerdo da rua, meio perdido, não conseguia definir muito bem a paisagem.
Depois, aprofundando um pouco mais a vista, percebi que naquele canto ficava o fim da rua. Tomando um grande espaço, havia uma enorme cama, sobre a qual várias pessoas se tocavam em franca confraternização. Não recordava de ter-me deslocado até lá, mas, de repente, me vi deitado no meio de toda aquela gente. Uma mulher aproximou-se de mim e, soltando a sua longa cabeleira, descansou, suavemente, a cabeça sobre os meus pés descalços. Senti meu coração disparar, embalado pela aceleração de suas próprias batidas.
Na cena seguinte - parece que de outro ângulo - ela, lentamente, foi levantando o corpo; ficou sentada bem junto a mim, quase de frente, levou a mão direita em direção ao meu rosto, como se fosse acariciá-lo.
Acho que eu devo ter entendido mal e, instintivamente, levei minha mão até a sua cabeça, vagarosamente, fiz com que descesse por toda a extensão dos seus longos cabelos pretos, até sentir a pele macia de suas costas, já quase na altura da cintura. Tudo acontecia sem o menor controle da minha vontade, quando fui surpreendido por sua áspera reação:
- Nunca – com o indicador em riste na direção do meu rosto, aos gritos – nenhum outro homem teve uma atitude assim, comigo... E continuava alterando, cada vez mais, a sua voz.
Apesar de ninguém ter dado a menor importância àquela sua atitude, fui ficando com muita vergonha e constrangimento. Tomado por um terrível sentimento de culpa, pelo que, supostamente, tivesse cometido, fui-me afastando, como um fugitivo, em direção ao mesmo bar onde estava, quando tudo começou.
Passei direto pela plataforma de cimento e continuei pela mesma calçada, a qual me levaria até a pensão. Naquele momento, tive a sensação de que estava um pouco mais frio. Talvez fosse o vento. Não tinha idéia de onde ficava exatamente a pensão; e o meu quarto como seria? Há quanto tempo eu morava ou estaria hospedado naquela pensão?
A sensação era de que todas essas imagens, ou referências, enquanto o sonho ia se desenvolvendo, surgiam, assim, aos poucos, instaladas numa espécie de não lugar que se revelariam como flashes, aos meus olhos. Dava-me a impressão de que todo aquele cenário estava sendo montado por algum mecanismo da minha mente, simultaneamente, só para ir dando um ar de realidade ao meu sonho; como o trabalho de um pintor, ao rabiscar numa grande folha de papel de desenho, o quadro que pretende pintar.
Senti passos fortes e apressados, quase nos meus calcanhares. Determinada, já vestindo outra roupa – um macacão preto, acolchoado nos quadris, a realçá-los ainda mais - cujo comprimento não passava da altura das suas canelas; o fecho éclair, aberto, revelava parte dos seus lindos seios claros. Estava tão sensual quanto com aquele vestido quase transparente, quando descansou, suavemente, a sua cabeça sobre os meus pés descalços, lá na grande cama. Talvez isso tivesse durado apenas alguns segundos, mas, para mim, pareceu uma eternidade.
Senti um alívio quando o homem que vinha em sentido contrário – surgido como por encanto – esboçou uma saudação em minha direção. Logo reconheci que se tratava do sapateiro, o qual tinha a sua oficina ao lado da minha pensão. Uma nova amizade, talvez, ou, quem sabe, até já tivesse consertado alguns sapatos meus. Quando ia dirigir-lhe a palavra – seria a minha tábua de salvação - já a uma distância de cinco ou seis passos, ela, interpondo-se a nós, irradiando uma alegria contagiante, perguntou a ele se poderia pegar as suas sandálias, no dia seguinte, lá na saparia. Nada que lembrasse aquele seu comportamento, momentos antes, lá na cama. Ainda sugeriu, amavelmente, ao sapateiro, que passaria pela oficina, na parte da manhã, bem cedo, quando saísse para a academia. O senhor aquiesceu com um leve gesto de cabeça e, virando as costas para nós, continuou o seu caminho.
Enquanto eles combinavam a entrega das sandálias, não vi alternativa que não fosse afastar-me para um lado, disfarçadamente, não sei nem porque – vontade de sumir – comecei a cantarolar uma linda música – já a pegando na segunda parte – do Paulinho Nogueira:
-... E chegando a noite devagar/Descontrair sua razão/Soltar de leve o coração...
Como se tivesse abstraído totalmente aquele incidente “ocorrido” entre nós, gentil e de uma forma muito simpática, colocou o braço sobre o meu ombro, olhando-me com ternura, ensaiou algumas considerações sobre a música do Paulinho.
Talvez para expiar o meu suposto pecado, fiz o possível para socorrê-la e, num esforço, arrisquei algumas palavras que pudessem ajudá-la; essa minha infeliz tentativa nada acrescentou ao que ela já havia dito. Eu apenas tentara um gesto de solidariedade, deixando escapar, talvez, um suposto sentimento de culpa.
Logo a seguir, ainda com o braço sobre o meu ombro, foi inclinando a sua cabeça, até encostá-la na minha – era bem mais alta do que eu – e determinando a direção pela qual caminharíamos, lado a lado, por alguns instantes. Revelou uma voz afinadíssima e, ainda, uma grande força de interpretação; continuamos cantando, em uníssono, até o final da música:
-... Procurar alguém o seu bem verdadeiro/Tão somente e vai saber simplesmente/O que é bom pra você.
Deixando-me para trás, apertou novamente o passo e foi-se misturando, logo mais à frente, à suave bruma provocada pelo lusco-fusco daquele final de tarde e chegada da noite que, pouco a pouco, foi desfazendo a sua silhueta.
1 comentários:
Interessante. Gostei.
Um psicanalista poderá sempre fazer algumas considerações confrangedoras, especialmente algum diletante, mas da vida psíquica das personagens não precisa o autor distanciar-se.
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