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domingo, 14 de outubro de 2012

Os sapatos de Matilde



Maria de Fátima

Estavam como que esquecidos na varanda.
Uns sapatos de verniz vermelho. O sapato esquerdo em cima do contraforte do sapato direito. Parecia que bailavam juntos, mas podia também ser entendido que os dois sapatos se entretinham numa longa conversa ou que estivessem namorando.
Não era decerto isso o que eu pensava naquele fim de tarde.
Eu e Dionísio sentados mesmo em frente da varanda onde estavam os sapatos: um muro branco com escafelos e ervas a saírem de buracos.
Eu e ele, meia-leca de gente. Nem andaríamos na quarta. Talvez andássemos na terceira, ambos moradores na mesma rua onde estavam os sapatos que pareciam ter sido abandonados na varanda, uma dessas janelas com paliçada em ferro para que, quem venha de dentro, possa debruçar o corpo inteiro a assomar para fora. A minha avó Catarina, dizia que eram janelas de sacada, quando descrevia: na minha sala tenho duas janelas de sacada. E não tinha. Nunca tivera. A minha avó Catarina inventava vidas para se entreter. Era o que dizia a minha mãe que não apreciava esse pendor de invenção que a minha avó demonstrava:
– Senhora! que vossemecê inventa cada coisa! e cisma que é verdade! sina a minha!
Eu e Dionísio sentados no muro, a baloiçar umas pernitas magras de joelhos esfolados, umas feridas novas e outras com carepas, os dois muito quietos a mirarmos o brilho que uma nesga de sol entre dois telhados fazia sobre os sapatos esquecidos no estreito rectângulo de cimento que era a janela de sacada da casa de Matilde. E foi quando ela apareceu a dizer para dentro, como se viesse já falando:
– Olha! estão aqui os sapatos!
Ela a admirar-se de os ter encontrado, e eu e Dionísio embasbacados a olhar-lhe as pernas e o rabo que assomavam entre os ferros. Matilde estava descalça e tinha vestidos uns calções curtinhos e justos.
Seriam dela os sapatos que assomavam para a rua onde morávamos, uma calçada sempre húmida, mesmo nos pinos de meio-dia, mesmo se fosse Agosto.
Talvez Matilde os tivesse descalçado a colocar o pé esquerdo sobre o pé direito e, nisso, a fazer um último adeus ao Francisco que desceria a rua. Meia-noite, ou talvez passasse, e Matilde com os pés doridos, a descalçar o sapato direito com o outro pé, nem pensando no gesto, ela apenas com olhos para o namorado e a aliviar os pés de ter dançado tanto nessa noite. Seria disso que os sapatos tinham ficado encavalitados, o esquerdo em cima do direito.
Terei pensado tudo isto a olhar Matilde? Não me recordo. Nem acredito. O que me lembro, como se fosse hoje, é que Matilde, a debruçar-se para apanhar cada um dos sapatos encarnados, virou para a rua o rabo que nela era um pedaço de carne, mas era muito mais do que isso, e nem eu nem Dionísio sabíamos explicar o que havia no rabo de Matilde. Mas tinham qualquer coisa, que eu ainda não percebia, as duas nádegas a saírem do calção, uma delas encostada aos ferros da janela de sacada. E eu a sentir o céu a ficar pesado, a luz a nublar-se, um arrepio no corpo, os olhos desfocando Matilde que se virava a erguer, dependurados em dois dedos, os sapatos vermelhos.
Dava-se assim comigo e estou em crer que seria o mesmo com Dionísio.
Ela a olhar lá do alto e a falar-nos:
– Olha os parvos dos rapazes! para onde olhais, fedelhos?
Que Matilde já saberia muito bem aonde estavam os nossos olhos!
E, enquanto isso, balançava os sapatos para fora da varanda como se quisesse atirar cada um deles.
E no entretanto de se ir debruçando a chamar-nos fedelhos, Matilde mostrava as maminhas que trazia soltas numa blusinha de tecido fino com florinhas miúdas, e nem sutiã a segurá-las. Duas maminhas por detrás do par de sapatos que ela balançava para fora da varanda do primeiro esquerdo, por cima da merceeira do Fragoso.
Dois prédios abaixo, vivia eu e o meu pai, negociante de peixe, e Rosa Maria, minha mãe, que me criava e aos meus dois irmãos, mais velhos do que eu. E lá em casa ainda morava a minha avó materna que inventava coisas.
O Dionísio morava lá em baixo, junto ao largo.
A blusa de Matilde a deixar ver os seios que eram castanhos como ela, uma mulata ainda mal saída dos cueiros e já atrevidota, que era o que o meu pai dizia da filha da Dona Zulmira, preta nascida em Angola. E a minha mãe dizia dela, tantas vezes: devia ir falar com a mãe dessa menina...E nunca explicava o que a moveria. A minha mãe Rosinha sempre ataviada de preceitos, normas e bons costumes.
E eu nem sei se havia um Francisco que era namorado de Matilde. E nem se ela tinha idade para sair de noite, e nem se ia a bailes. E nem sei mesmo se terei sido eu quem inventou o par de sapatos, ainda mais vermelhos e encavalitados um sobre o outro, esquecidos na sacada do primeiro andar onde morava Matilde. Mas sei que ela apareceu a debruçar-se na janela naquele abençoado fim de tarde. Isso, é mais do que certo. Como é certo que Matilde vestia uns calções justos e curtinhos.
E também não tenho dúvidas que só tinha uma blusa fininha a cobrir as maminhas. As flores miúdas do tecido é que podem ser invenção minha, agora que conto.
Mas certo, mesmo certo, é que Matilde não gostou do que eu disse quando ela se dispunha a fechar a janela com o par de sapatos pendurado em dois dedos.
Eu e Dionísio a gritarmos cá de baixo:
– Matilde do cu grande.
Apenas isso! Que importância tinha? Era até verdade!
Mas Matilde não deve ter gostado. E eu devia ter percebido que aquele ruído tilintante, quando ela foi para dentro e fechou a porta da varanda, era Matilde furiosa. Mas não percebi e fiquei em cima do muro a aliciar Dionísio que repetisse comigo:
– Matilde do cu grande.
Eu e ele a berrarmos cada um mais alto, e já Matilde saía do prédio, e eu juro que nem tive tempo de ver-lhe as pernas muito altas a sobrarem dos calções, e nem as maminhas a saltarem debaixo da blusa, ou ela a mostrá-las, nuas, quando se debruçou no muro. E cuido que o mesmo se tenha passado com Dionísio a fugir rua abaixo e ainda a gritar, para meu grande espanto, mal se apanhou protegido pela esquina de um prédio:
– Tu namoras com o Francisco.
E tenho a certeza que o Dionísio não sabia porque dizia isso. E nem eu. Sei que as mãos de Matilde me seguraram e ela bateu-me com o sapato. Seria um sapato vermelho, ou seria outro com um salto igualmente fino, o certo é que ela me bateu com ele uma, duas, muitas vezes, e que eu esbracejava a tentar defender-me.
E foi dessa refrega que o meu braço esquerdo – tenho a certeza absoluta que foi esse – se enfiou na blusa de Matilde.
Eu não fiz de propósito. Jurei naquele dia e ainda hoje o faço.
– Eu não fiz isso – disse eu, choroso e doído, a ouvir os seus gritos. 
 Ele apalpou-me as maminhas, berrará Matilde.
E a minha mãe a corar de vergonha e de raiva:
– Pode lá ser menina, o anjinho…
E estava minha mãe repleta de razão, que eu até senti medo quando toquei naquilo!
Mas Matilde dizia, que a ouvia quem passasse na ruazinha estreita, que eu lhe tinha metido a mão na blusa, para lhe apalpar as maminhas.
Só muito mais tarde percebi que com isso ela justificaria o lenho que me tinha feito a bater-me com o salto do sapato, mesmo em cheio na cara.
E a verdade, verdadinha, é que eu não lhe meti a mão por baixo da blusa e nem pelo decote. A verdade, é que foi apenas um descuido, um acidente, que eu ainda hoje me lembro do arrepio que senti no corpo mal os meus dedos deslizaram sobre os bicos rijos das maminhas de Matilde.
Ela a bater-me com o sapato, e eu a passar a mão como se nada fosse, eu num transe de quem descobre.
Eu que ficaria até desapercebido da pancada não fosse Matilde ter batido de tal modo que o salto fino me deixou um rasgo no rosto da cor de cada um dos dois sapatos.
Um rasgo do canto do olho esquerdo até ao queixo. Uma diagonal de sangue de que me ficou, até hoje, a cicatriz.
Foi tão grave, que a minha mãe, a tratar-me da ferida, jurou que desta vez iria mesmo falar com a mãe de Matilde, e gritava isso, a esquecer-se dos preceitos.
– Desta vez vou falar com a preta – dizia ela a besuntar-me a cara com mercurocromo.
E lá foi, a arrastar-me rua acima, tirar contas à vizinha.
Foi só daí, do diferendo,  que fizeste tu, que foi que ele te fez, que fiquei sabendo que enquanto Matilde me batia, ainda antes de me rasgar a cara com o salto, eu tinha estado a cometer o pecado grave de apalpar as suas maminhas.



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4 comentários:

Eh, eh!
A descoberta da sexualidade pelas crianças costuma dar narrativas bem saborosas.

Sempre acho um grande desafio quando um escritor se propõe a escrever em primeira pessoa com um narrador do sexo oposto ao seu.
Geralmente, o resultado não costuma ser dos mais satisfatórios, no entanto, a Maria de Fátima é hábil o suficiente para conduzir bem a narrativa, sem deslizes.

Gostei, é um conto muito visual.

Abraços.

Fico sempre com um ror de dúvidas e, sim, Henry, uma delas, é essa. Obrigada

Este comentário foi removido pelo autor.

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