Maria de Fátima
Estavam como que esquecidos na varanda.
Uns sapatos de verniz vermelho. O sapato esquerdo em cima
do contraforte do sapato direito. Parecia que bailavam juntos, mas podia também
ser entendido que os dois sapatos se entretinham numa longa conversa ou que
estivessem namorando.
Não era decerto isso o que eu pensava naquele fim de
tarde.
Eu e Dionísio sentados mesmo em frente da varanda onde
estavam os sapatos: um muro branco com escafelos e ervas a saírem de buracos.
Eu e ele, meia-leca de gente. Nem andaríamos na quarta.
Talvez andássemos na terceira, ambos moradores na mesma rua onde estavam os sapatos que pareciam ter sido abandonados na varanda, uma dessas
janelas com paliçada em ferro para que, quem venha de dentro, possa debruçar o
corpo inteiro a assomar para fora. A minha avó Catarina, dizia que eram janelas de sacada, quando descrevia: na minha sala tenho duas janelas de sacada. E
não tinha. Nunca tivera. A minha avó Catarina inventava vidas para se entreter.
Era o que dizia a minha mãe que não apreciava esse pendor de invenção que a
minha avó demonstrava:
– Senhora! que vossemecê inventa cada coisa! e cisma que
é verdade! sina a minha!
Eu e Dionísio sentados no muro, a baloiçar umas pernitas
magras de joelhos esfolados, umas feridas novas e outras com carepas, os dois
muito quietos a mirarmos o brilho que uma nesga de sol entre dois telhados
fazia sobre os sapatos esquecidos no estreito rectângulo de cimento que era a
janela de sacada da casa de Matilde. E foi quando ela apareceu a dizer para
dentro, como se viesse já falando:
– Olha! estão aqui os sapatos!
Ela a admirar-se de os ter encontrado, e eu e Dionísio
embasbacados a olhar-lhe as pernas e o rabo que assomavam entre os ferros.
Matilde estava descalça e tinha vestidos uns calções curtinhos e justos.
Seriam dela os sapatos que assomavam para a rua onde
morávamos, uma calçada sempre húmida, mesmo nos pinos de meio-dia, mesmo se
fosse Agosto.
Talvez Matilde os tivesse descalçado a colocar o pé
esquerdo sobre o pé direito e, nisso, a fazer um último adeus ao Francisco que
desceria a rua. Meia-noite, ou talvez passasse, e Matilde com os pés doridos, a
descalçar o sapato direito com o outro pé, nem pensando no gesto, ela apenas
com olhos para o namorado e a aliviar os pés de ter dançado tanto nessa noite.
Seria disso que os sapatos tinham ficado encavalitados, o esquerdo em cima do
direito.
Terei pensado tudo isto a olhar Matilde? Não me recordo.
Nem acredito. O que me lembro, como se fosse hoje, é que Matilde, a debruçar-se
para apanhar cada um dos sapatos encarnados, virou para a rua o rabo que nela
era um pedaço de carne, mas era muito mais do que isso, e nem eu nem Dionísio
sabíamos explicar o que havia no rabo de Matilde. Mas tinham qualquer coisa,
que eu ainda não percebia, as duas nádegas a saírem do calção, uma delas encostada
aos ferros da janela de sacada. E eu a sentir o céu a ficar pesado,
a luz a nublar-se, um arrepio no corpo, os olhos desfocando Matilde que se
virava a erguer, dependurados em dois dedos, os sapatos vermelhos.
Dava-se assim comigo e estou em crer que seria o mesmo com Dionísio.
Dava-se assim comigo e estou em crer que seria o mesmo com Dionísio.
Ela a olhar lá do alto e a falar-nos:
– Olha os parvos dos rapazes! para onde olhais, fedelhos?
Que Matilde já saberia muito bem aonde estavam os nossos
olhos!
E, enquanto isso, balançava os sapatos para fora da
varanda como se quisesse atirar cada um deles.
E no entretanto de se ir debruçando a chamar-nos
fedelhos, Matilde mostrava as maminhas que trazia soltas numa blusinha de
tecido fino com florinhas miúdas, e nem sutiã a segurá-las. Duas maminhas por
detrás do par de sapatos que ela balançava para fora da varanda do primeiro esquerdo,
por cima da merceeira do Fragoso.
Dois prédios abaixo, vivia eu e o meu pai, negociante de
peixe, e Rosa Maria, minha mãe, que me criava e aos meus dois irmãos, mais
velhos do que eu. E lá em casa ainda morava a minha avó materna que inventava
coisas.
O Dionísio morava lá em baixo, junto ao largo.
A blusa de Matilde a deixar ver os seios que eram
castanhos como ela, uma mulata ainda mal saída dos cueiros e já atrevidota, que
era o que o meu pai dizia da filha da Dona Zulmira, preta nascida em
Angola. E a minha mãe dizia dela, tantas vezes: devia ir falar
com a mãe dessa menina...E nunca explicava o que a moveria. A minha mãe Rosinha
sempre ataviada de preceitos, normas e bons costumes.
E eu nem sei se havia um Francisco que era namorado de
Matilde. E nem se ela tinha idade para sair de noite, e nem se ia a bailes. E
nem sei mesmo se terei sido eu quem inventou o par de sapatos, ainda mais
vermelhos e encavalitados um sobre o outro, esquecidos na sacada do primeiro
andar onde morava Matilde. Mas sei que ela apareceu a debruçar-se na janela naquele
abençoado fim de tarde. Isso, é mais do que certo. Como é certo que Matilde
vestia uns calções justos e curtinhos.
E também não tenho dúvidas que só tinha uma blusa fininha
a cobrir as maminhas. As flores miúdas do tecido é que podem ser invenção
minha, agora que conto.
Mas certo, mesmo certo, é que Matilde não gostou do que
eu disse quando ela se dispunha a fechar a janela com o par de sapatos
pendurado em dois dedos.
Eu e Dionísio a gritarmos cá de baixo:
– Matilde do cu grande.
Apenas isso! Que importância tinha? Era até verdade!
Mas Matilde não deve ter gostado. E eu devia ter
percebido que aquele ruído tilintante, quando ela foi para dentro e fechou a
porta da varanda, era Matilde furiosa. Mas não percebi e fiquei em cima do muro
a aliciar Dionísio que repetisse comigo:
– Matilde do cu grande.
Eu e ele a berrarmos cada um mais alto, e já Matilde saía
do prédio, e eu juro que nem tive tempo de ver-lhe as pernas muito altas a
sobrarem dos calções, e nem as maminhas a saltarem debaixo da blusa, ou ela a
mostrá-las, nuas, quando se debruçou no muro. E cuido que o mesmo se tenha
passado com Dionísio a fugir rua abaixo e ainda a gritar, para meu grande
espanto, mal se apanhou protegido pela esquina de um prédio:
– Tu namoras com o Francisco.
E tenho a certeza que o Dionísio não sabia porque dizia
isso. E nem eu. Sei que as mãos de Matilde me seguraram e ela bateu-me com o
sapato. Seria um sapato vermelho, ou seria outro com um salto igualmente fino,
o certo é que ela me bateu com ele uma, duas, muitas vezes, e que eu
esbracejava a tentar defender-me.
E foi dessa refrega que o meu braço esquerdo – tenho a
certeza absoluta que foi esse – se enfiou na blusa de Matilde.
Eu não fiz de propósito. Jurei naquele dia e ainda hoje o
faço.
– Eu não fiz isso – disse eu, choroso e doído, a ouvir os
seus gritos.
Ele apalpou-me as maminhas, berrará Matilde.
E a minha mãe a corar de vergonha e de raiva:
– Pode lá ser menina, o anjinho…
E estava minha mãe repleta de razão, que eu até senti
medo quando toquei naquilo!
Mas Matilde dizia, que a ouvia quem passasse na ruazinha
estreita, que eu lhe tinha metido a mão na blusa, para lhe apalpar as maminhas.
Só muito mais tarde percebi que com isso ela justificaria
o lenho que me tinha feito a bater-me com o salto do sapato, mesmo em cheio na
cara.
E a verdade, verdadinha, é que eu não lhe meti a mão por
baixo da blusa e nem pelo decote. A verdade, é que foi apenas um descuido, um
acidente, que eu ainda hoje me lembro do arrepio que senti no corpo mal os meus
dedos deslizaram sobre os bicos rijos das maminhas de Matilde.
Ela a bater-me com o sapato, e eu a passar a mão como se
nada fosse, eu num transe de quem descobre.
Eu que ficaria até desapercebido da pancada não fosse
Matilde ter batido de tal modo que o salto fino me deixou um rasgo no rosto da
cor de cada um dos dois sapatos.
Um rasgo do canto do olho esquerdo até ao queixo. Uma
diagonal de sangue de que me ficou, até hoje, a cicatriz.
Foi tão grave, que a minha mãe, a tratar-me da ferida,
jurou que desta vez iria mesmo falar com a mãe de Matilde, e gritava isso, a
esquecer-se dos preceitos.
– Desta vez vou falar com a preta – dizia ela a
besuntar-me a cara com mercurocromo.
E lá foi, a arrastar-me rua acima, tirar contas à
vizinha.
Foi só daí, do diferendo, que fizeste tu, que foi que ele
te fez, que fiquei sabendo que enquanto Matilde me batia, ainda antes de me
rasgar a cara com o salto, eu tinha estado a cometer o pecado grave de apalpar
as suas maminhas.
4 comentários:
Eh, eh!
A descoberta da sexualidade pelas crianças costuma dar narrativas bem saborosas.
Sempre acho um grande desafio quando um escritor se propõe a escrever em primeira pessoa com um narrador do sexo oposto ao seu.
Geralmente, o resultado não costuma ser dos mais satisfatórios, no entanto, a Maria de Fátima é hábil o suficiente para conduzir bem a narrativa, sem deslizes.
Gostei, é um conto muito visual.
Abraços.
Fico sempre com um ror de dúvidas e, sim, Henry, uma delas, é essa. Obrigada
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