São 11 da noite. Eu
não sei se pressinto ou se estou mesmo ouvindo os passos que se
aproximam novamente da minha porta.
Desde que me mudei para
este prédio, escuto as pisadas de todos os moradores com nitidez. O chão de
cerâmica dos corredores faz ressoar todos os sapatos, especialmente aqui no meu
andar, que é o último. O mais estranho dos passos é que a gente sempre imagina
como é o corpo em cima da sola. Depois de um tempo, um esbarrão na entrada do
prédio, um encontro na escada confirmam a suspeita de quais passos pertencem a
quem. E é quase sempre batata! Existe uma intimidade até promíscua em
reconhecer o outro pelos passos.
O edifício não é
grande. São três andares com quatro apartamentos em cada um, todos de um quarto
só. Apartamentos para solteiros, embora eu tenha certeza de que em vários deles
esteja morando mais de uma pessoa, principalmente crianças.
Reconhecer as
crianças é mais fácil, porque menino não anda, corre. E grita. Vira tudo um
escarcéu que mais parece briga, tropel. Mesmo assim, tem os que andam com um
passinho miúdo e rápido, como a menina do primeiro andar que sobe aqui de vez
em quando para brincar com o garotinho que mora duas portas depois da minha. Tem
minha vizinha da direita, que chega sempre tarde e sobe as escadas de salto
alto, fazendo um estrondo que acorda meio mundo. Eu não sei como ela é, nem quantos
anos tem, porque nunca a vi, mas escutei sua voz uma vez e me pareceu alguém
entre os 25, 30 anos.
É divertido este
pretenso controle diário de idas e vindas, de subidas e descidas. Como meu
horário de trabalho é variável, fico brincando comigo mesma de identificar os
passos da manhã e as pisadas da tarde. Já as passadas da noite são quase sempre
as mesmas: um estudante universitário que chega por volta de meia-noite; o
senhor do 403, que bebe, cambaleia e faz “psiu” para si mesmo; visitantes
ocasionais, parceiros de um sexo também ocasional, e que andam sempre na ponta
dos pés; e, é claro, os visitantes habituais, já quase aceitos como moradores —
namorados, noivos, amantes fixos.
Quando a gente
conhece assim tão bem os passos, fica difícil não se desconcertar com alguma
coisa que soa diferente. Como esses passos. Não faz uma semana que dei para escutar
esses pés impacientes que param à minha porta. São saltos de mulher, sem
dúvida, mas parecem frouxos, perdidos. Ficam um pouco, depois se afastam. Não
reconheço a direção de onde vêm ou a que tomam em seguida, mas sei que chegam
sempre, sempre às 11 horas. O que fazem esses pés na minha porta?
Sondei se há moradoras
novas no prédio. “Não, ninguém se mudou“ — afirmou o porteiro indiferente. Minha
segunda pesquisa foi junto às solteiras como eu, com quem acabei travando um
tipo corriqueiro de amizade ao longo dos dois anos em que moro aqui. Alguma
amiga dormindo em casa? Parente?
Não, nenhuma delas tem recebido visitas. Enfim, não tenho a menor pista sobre
os passos. Além disso, reclamar com o síndico sobre quem tem ou não as chaves
do prédio é bobagem. Em lugar de gente solteira, tudo é cumplicidade.
Hoje, tomei banho mais
cedo e fiz um lanche leve. Ando tendo pesadelos quando como demais antes de
dormir. Um filme talvez me traga o sono mais rápido. Mas... O que é isso?! Droga,
a luz acabou de apagar no prédio todo! O que será? Logo eu que detesto
escuridão. E para completar os passos estão aí fora, novamente. Ai que agonia! Preciso
realmente fazer alguma coisa a respeito dessa criatura inconveniente! Vamos, coragem, vamos! Abro a porta de
supetão e não há ninguém no corredor. Sobre o tapete de entrada, apenas um par
de sandálias pretas, elegantes, de saltos altos. Já chega! Amanhã pela manhã vou reclamar com o síndico dessa bagunça! Que
cara de pau dessa mulher!, esbravejo, enquanto bato a porta com força.
São apenas 5 da manhã e o
alarme chato do celular está tocando. Eu, hein! Na escuridão de ontem, devo ter
me distraído e programado errado o horário. Agora, não vou conseguir dormir de
novo e o resto do meu dia está arruinado! Mas isto não é... não é o despertador...
É a campainha! O síndico ignora os meus olhos quase fechados e pede desculpas
pelo incômodo. Apresenta-me rapidamente a um policial de bigode e a dois bombeiros
compungidos, e pergunta, sem rodeios: “Você tem visto a sua vizinha de porta?” Não
vi. Aliás, vejo pouco. A moça não aparece no trabalho há quase uma semana e
alguém deu queixa do sumiço dela. Eles me avisam, então, que vão fazer barulho,
porque é preciso arrombar a porta do apartamento dela.
Lá dentro, uma mulher
de cabelos pretos, caída no chão da sala, está morta há uma semana, comentam os
bombeiros em voz baixa. Nos pés, um par de sandálias pretas. Elegantes. De
saltos altos.
6 comentários:
Gostei de encontrar você por aqui, mocinha! Bjão!
Muito bom, Cinthia, apesar de o clima de suspense só se instaurar de fato mais pelo final.
Parece até que estava descrevendo a minha vizinhança. No andar de cima, moram três amigas chinesas que parece que nasceram de salto alto. É o dia inteiro o toc-toc por todos os cômodos do apartamento. :D
Abraços.
Uma prosaica crónica da vida moderna virou prólogo de conto fantástico.
Adorei! Surpreende final!
Muito bom, Cinthia! O começo me atraiu, já dando um toque de suspense, depois achei que tinha me enganado de gênero. Mas a descrição do cotidiano foi só um (bom) toque para reforçar a reviravolta do final...
Parabéns!
Obrigada, Maristela! Acho os feedbacks muito bons e me dão orientação para os próximos!
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