Como um nó que te apertasse, ou como se estivesses a ser entaipada, as pás
de cimento e pedra a acumularem-se em frente do teu rosto, e tu sabendo que era
para nunca mais.
O definitivo a dar-se de modo muito angustiante.
Muito mais intenso e dolorido, e diga-se mesmo que mais asqueroso, do que
no último sábado deste Agosto, meio dia a pique, e a urna sem caber no buraco.
A mulher lá dentro e o coveiro a buscar uma picareta com que retirasse aquele
bocado de terra dura na parede da cova, e a urna descesse, e em definitivo
terminasse a função que era devida de enterrar quem estava morto.
E o sol ardendo.
Que o que tu sentiste a olhar o retrato nem era angustia, nem medo, nem um
simples receio. Longe disso. Seria antes um sentimento novo que tivesse surgido
no preciso instante em que, vá-se lá saber por que sinapse inopinada que
tivesse acontecido, tivesses finalmente a certeza de que era irreversível, que
tinhas perdido cada um deles na voragem da vida.
Os teus dois filhos já crescidos, saudáveis e felizes, uns homens feitos, e
tu naquele despropósito de nem mais poderes apertar nos braços um e outro,
assim tal e qual como tinham sido, e isso decorrente de os teres alimentado,
dado remédio a tempo e horas, muita fruta e muitos líquidos, e carne o quanto
baste para suprir nutrientes, e o peixe, e os ovos. Tudo isso com esmero e
tento, desde que tinham nascido, e enquanto foram passando as diferentes fases:
o sorriso, o bater palminhas, o enviar beijinhos, a primeira frase, e aquele
abraço quando um deles terminou a prova de natação em primeiro lugar. E as
confissões de um e do outro, a primeira namorada e o primeiro desgosto.
Nunca mais.
O teu corpo num esgar de quem esgravata terra com as unhas e nada que venha
em socorro, nem um grão que alimente, ou água que mate o seco dos lábios, da
garganta, dos olhos a olharem impossíveis ali no retrato, o definitivo a fazer
garrote e aquela sensação que tu tinhas sempre, intensa, controlável à força de
fazer-se em hábito, ou porque nunca tinha sido efectivamente uma fobia e tão
sòmente a mania de sentires-te apertada em espaços fechados: se entravas numa
casa de banho sem janela ou se o elevador demorava mais do que a conta entre os
vários andares.
Aquele aperto a dar-se, um nó corredio em cima da tua epiglote, o nó a
apertar-te, e tu quase a chorar pelo que deixaras que eles crescessem, que se
tornassem nos homens que eram. Nunca mais o menino que levavas ao colégio ou
que acordava pelas noites num imenso choro, ou te dizia ao ouvido, declaração
de amor que não esqueceste: quando for grande, caso contigo, mãe.
Tinham ficado onde?
Nos insterstícios que a vida faz de cada um da gente? Nas malhas do tempo?
Onde?
Perdida tu deles e nunca mais a não ser que o tempo revertesse e tu
pudesses colocar os muitos que cada um tinha sido, do berço, aos bancos do
liceu, todos sentados por ali a conversarem contigo e a conversarem entre eles,
meninos que, tendo sido, desapareceram a dar lugar a estes homens.
Onde? onde? onde?
Onde os teus meninos, Maria do Rosário?
Onde podes ainda encontrar cada um deles sem que seja no papel morto e frio
das fotografias ou na animação doentia da luz dos filmes que fizeram apenas
naquele ano em que estiveram na praia?
Talvez seja possível, mas tu não acreditas, e é o renovar da angústia, e
chamas-lhe isso por não teres outro nome para o sentir daquela tarde, fim de
manhã, mais propriamente, o sol intenso que era o mês de Agosto.
E a partir daí, os instantes fizeram
corrente, juntaram-se em segundos e foram fazendo outras manhãs e outras
tardes, mas primeiro que todas foi a noite daquele dia e o sonho: os teus
meninos a fazerem falas de passados que tu nem sabias porque lá não estavas.
Distraida deles, andarias cirandando por
futuros
2 comentários:
Fátima, minha amiga, que triste, que dolorido, que lindo! Essa descrição do que se dá a eles (filhos) e do que se perde com os anos, nos anos. "Tinham ficado onde?
Nos insterstícios que a vida faz de cada um da gente?"
Essa frase me atravessou de um lado a outro. Dor de lembrança é dor de não existir mais — alguém, alguma coisa. Belíssimo texto! Beijos.
Penso várias na morte quando estou com o meu filho. O que faria se de repente ele não estivesse assim, vivo, de saúde?
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