A Mosca no Tetraplégico
O Tetraplégico já havia aceitado que
lhe restara apenas o livre arbítrio e a opinião. Pisque uma vez para sim, duas para
não.
No dia da mosca, a janela do quarto
aberta. Flores ao lado da cama, as pétalas tremelicam, a brisa e sua liberdade.
Vamos, o sopro murmura na pele e levanta o Tetraplégico pelo ar.
Piscou uma vez para sim.
A mosca preta, a mosca zombeteira,
entra pelo campo de visão, asas erráticas, asas robóticas. Pousa sua sujeira
nas flores, mexe as patinhas na água, na sonda, no soro.
Piscou duas vezes para não.
A enfermeira entra no quarto, gigante
de branco, e a mosca zune se afastando. A mulher gira a manivela da cama e levanta
o colchão aos trancos. O Tetraplégico e o céu da janela, vejam como é azul, as nuvens
caldosas e rechonchudas.
Uma vez para sim.
Sai a enfermeira. A noite agarra o
dia para a caverna. A mosca e seu vulto pontiagudo, verruga voadora. Gira pela
cabeça do Tetraplégico. Sai de mim, inseto de abutre, passa daí, avião espião.
Duas vezes para não.
A lâmpada se acende e afugenta o
bicho pulguento. A enfermeira de volta para cuidar do paciente, lhe dar banho e
alimentar a boca murcha. Coloca-o para dormir, para os sonhos onde pode correr.
Puxa a coberta e lê em voz alta um novo capítulo – o herói, sua mocinha, seus
corpos se mexendo um para o outro.
Sim.
Ela se retira e apaga a luz, o
quarto estala na escuridão. A mosca cruza seu ouvido como moto-serra, socorro!,
alguém?, ninguém. O Tetraplégico esperneia em silêncio, os membros molengas e
imóveis. Aqui, ali, cadê ela?, fecha os olhos, a mosca, o Tetraplégico, ele a sente,
jura, jura que sim. As pernas cabeludas na boca aberta, cócegas nos lábios, um
ninho na língua. Até o fim ele se esforça, mas o grito não passa do piscar dos
olhos.
1 comentários:
Magnífico!
Muito talentoso o autor.
Triste esse texto, mas assim é a vida...
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