Pronunciamento literário
(por Ramon Barbosa Franco)
Havia acabado de presenciar uma série de fatos cotidianos ideais para as composições de contos. Sento à mesa da livraria ainda com as barras da calça molhadas pela lama, poça de enchente e sujeira que a enxurrada tinha levado para dentro de 10 casas da periferia de Marília, me coloco a conversar com o entrevistado. Me perdi nas perguntas, no motivo inicial da vinda daquele escritor e de seu colega para um evento literário na biblioteca municipal, acabando por levar uma chateada do literato. "Você, antes de sair da redação, precisa ler o release para saber sobre o assunto que irá escrever", me disse.
Só nestas linhas escritas há pouco já estariam assuntos suficientes para um romance social, uma análise do impacto ambiental causado pelo desordenamento da urbanização, matéria jornalística para a ocupação irregular de áreas de preservação ou que apresentem risco externo aos moradores, e, ainda, um manual de como um repórter deve abordar entrevistados com ares poucos amistosos diante de certas circunstâncias.
Este é um traço comum do conto, gênero literário conciso que encontra campo fértil na obra do recluso Dalton Trevisan, o brasileiro de Curitiba que acaba de ganhar o Prêmio Camões 2012. A comissão organizadora do prêmio, a mais elevada distinção literária para os escritores do idioma português (que, no passado, contemplou brasileiros como Ferreira Gullar, Autran Dourado, João Ubaldo Ribeiro e Jorge Amado, além do português José Saramago), garantiu que o 'Vampiro de Curitiba' está ciente da conquista, mas não irá se pronunciar.
Em tempo de pós-modernidade, com a duplicidade de vida, na quase antagônica relação do ser real (do corre-corre diário) para o ser plural e amistoso do ambiente virtual (com perfis em Orkut e Facebook), Dalton Trevisan, que no próximo dia 14 de junho completa 87 anos de idade, se mostra fiel ao seu voto de silêncio e à clausura midiática, feito irmãs clarissas que não deixam o convento nem mesmo para missa celebrada pelo papa.
Trevisan não se pronuncia, só escreve.
Trevisan não se pronuncia, só escreve.
O entrevistado da chateada ao repórter que acabara de deixar a lama das inundações da favela do Linhão, no bairro Santa Antonieta, se revelou admirador de Dalton. "Eu não quero tomar café com o Dalton ou com o Rubem Fonseca (outro avesso à imprensa). Deles eu tenho o que há de melhor, ou seja, seus textos".
Ao contemplar o curitibano com o Prêmio Camões, o idioma português só valoriza ainda mais um dos gêneros que se encaixou perfeitamente ao pós-moderno. O conto, na velocidade da vida de hoje, é uma das formas mais eficientes do público ter acesso ao conteúdo literário de um autor. Se gostar, buscará outras variações de sua produção, seja em romance ou em novela.
Independente deste comportamento atual, Dalton sempre fixou seus pés e sua literatura na narrativa concisa e, claro, na Curitiba de homens e mulheres. Extrai dos chamados fait-divers, os acontecimentos diários, a trama do próximo conto, da próxima escrita enxuta. Tudo isso sem ao menos ser reconhecido fisicamente pelo público: é apenas mais um que passa e olha, despercebido. Entretanto, quando chega em casa, surgirão novelas, todas exemplares. Está nesta toada, nesta composição ficcional do fait-divers o seu pronunciamento literário. Como disse, Dalton não fala, escreve. E perfeitamente, diga-se de passagem.
Ao homem que se ver um jornalista ou um repórter-fotográfico por perto, enchendo o saco, é bem capaz de ser mais incisivo do que o entrevistado que orienta repórter a ler o release antes de deixar a redação, parabéns e obrigado.
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