a vida é organizada em livros
do início ao fim
tudo dividido em volumes
tudo impresso em sinais gráficos reconhecíveis
tudo atravessado num dos cantos da página por um número
de um ao [isso varia de caso a caso]
e se vai-se à frente
ou se volta-se
o lugar marcado na história estará no mesmo lugar
a exceção é a saudade
a saudade é uma pilha de folhas soltas
vez ou outra bate sobre quem as juntou a vontade de revê-las
como bate sobre elas o ar movido por uma janela esquecida aberta
ou por uma porta que de propósito se fecha
o amontoado se espalha pela casa toda
as folhas misturam-se aos outros livros
e vai-se encontrar saudade no meio do livro das contas a pagar
do de certificados de cursos de sessenta horas
do livro de visitas prometidas e nunca feitas
daquele dos primos distantes que só se viam no natal
e – como não? – do livro dos amores mal-resolvidos
então – e de geral é o que acontece –
é-se tomado por essa má boa coisa lusófona amarga e doce
vai-se ver
sentir
retraçar com os olhos – úmidos –
com as pontas dos dedos – trêmulos – a grafia de cada letra
re-significar cada palavra
reformular o sentido de cada sentença
mas o pior
o realmente doloroso nas páginas amarelecidas da saudade
é o vazio entre os ditos e os não-ditos
a coisa passa
como o ar que as moveu pára
o tempo que se tem para reordenar o ordenável
é o tempo que o tempo dá
[e isso também é variável, que inferno!]
qual é o procedimento?
na melhor hipótese
reuni-las de qualquer jeito
enfiá-las na mesma – ou noutra – gaveta
e evitar com força pôr os olhos na que ficou por cima
[eis um processo fadado ao fracasso:
não se sabe de nenhum caso em que nele tenha tido êxito]
outra possibilidade seria costurá-las
entretanto ninguém ousa fazê-lo
porque só estando quem as sente inerte
é que se pode uni-las definitivamente
porém, nesse caso, o indivíduo já não sente mais nada
publicado originalmente em: http://poeticaipsisverbis.blogspot.com.br/#!/2012/05/65-procedimentos-tecnico.html
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