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segunda-feira, 18 de junho de 2012

... E O TREM NEM PASSARIA


Otávio Martins 

   Ela não costumava pegar o trem quando ia visitar o pai; naquela tarde, porém, dirigiu-se à estação da Estrada de Ferro, a pé. Não pensou no carro. Ou nem lembrou. Como um autômato, tomou o caminho que a levaria até lá. Na plataforma, escolheu um daqueles bancos, sentou-se e ali permaneceu sozinha; viajava no tempo. Nenhum movimento de passageiros ou de carga. Nem atentou para esses detalhes. A enorme plataforma, bem dizer vazia. As lembranças, de quase uma vida inteira, foram-se instalando bem à sua frente, como se estivesse a assistir um filme. Não atinava para mais nada. O olhar estendia-se, parecendo perdido. Atenta a si mesma, puxava pela memória, a qual ia lhe trazendo uma enxurrada de imagens relacionadas a fatos e tempos passados. Nalgumas se detinha um pouco mais, noutras, um rápido olhar, só de passagem.

  Quando deu de cara com as três crianças - duas meninas e um menino - sabia, perfeitamente, que a menor era ela. Além do olhar, a cor dos cabelos e, também, os trejeitos. Ora, como não iria reconhecer a si própria? Mesmo que estivesse brincando com muitas outras crianças, saberia muito bem identificar-se. Tinha vivo na memória o modo que ajeitava os seus cabelos, além do tipo de vestido que costumava e gostava de usar. A parte central, na altura do peito, quase sempre, “fechada” por quatro pedaços de fita, formando um quadrado de, invariavelmente, cores vivas. Gostava, nessa época, lembra bem, daquele bege, de listas vermelhas; fora a sua tia Amélia quem havia feito para o seu aniversário de sete anos. A outra menina, que estava junto, conviveu com ela ainda por algum tempo. O pai da Katira, por motivos profissionais, teve que mudar-se para a Capital. Somente agora é que dera pra pensar. Nunca mais ouviu falar da sua amiga de infância. O Calito, seu irmão, costumava estar sempre na volta. Parece que gostava mais de andar e brincar com as meninas. Vivia a dizer que não achava graça nenhuma naquelas brincadeiras de seus coleguinhas.

   Lembrou, também, do dia em que Katira, com toda a família, embarcou, ali mesmo, naquela estação. Ela e o Calito, ainda que não tivessem que se despedir de alguém, gostavam de andar ali pelas redondezas da Estrada de Ferro. Os trilhos, mesmo que parecessem apenas duas simples paralelas colocadas a esmo, guardavam lá a sua magia. Quando sabiam que não era horário da passagem de trem, ela e o Calito caminhavam, se equilibrando, lado a lado, por vezes até de mãos dadas, sobre os trilhos. E, assim, costumavam percorrer grandes distâncias. Os trilhos se impunham, e era para isso mesmo, como a indicar por onde seguir em frente. Aquela palanca que ficava ao lado do entroncamento, ela sempre procurou uma maneira de dar-lhe algum sentido. Num simples manejo de um dos ferroviários, a máquina e toda a composição trocavam de suas bases, sem mudar a direção.   Chegavam à mesma estação, apenas um pouco mais ao lado. O rumo, por assim dizer, permanecia o mesmo. Pensava sobre essas coisas, mas, sem nem saber por quê.

  No colégio interno, o qual ficava noutra cidade, porém, bem próxima dali, sempre se lembrava dos passeios e das brincadeiras pelo pátio da Estrada de Ferro. Aquela palanca haveria de ter algum significado, ainda que não conseguisse defini-lo. Afinal, por que a sua imagem permanecia sempre em meio aos seus pensamentos, lá no colégio? Talvez - tentando deduzir – como a estabelecer alguma relação com o que lhe estivera ocorrendo durante aquele período da sua vida. Por diferentes que fossem sempre lhe pareciam os mesmos caminhos. Continuou estudando e sonhando o seu futuro, porém, as bases já não eram as mesmas. Calito ficou com o pai. Era dois anos mais velho que ela. Com a doença da mãe a vida dos dois, continuava, mesmo assim, na mesma direção.

 Sentia saudade de uma coisinha à toa, como andar sobre os trilhos. A única preocupação era se viria algum trem fora do horário de costume, ou, mesmo um daqueles troles, usados pelos ferroviários quando se deslocavam até um determinado lugar, onde fariam algum reparo na linha ou, simplesmente, buscar alguns de seus companheiros que estivessem aguardando num ponto qualquer, ao longo dos trilhos. Mas, ainda que inconscientemente, contavam com o aviso, que viria através de um apito, o qual daria para se escutar muito bem a uma boa distância. Era só esperar pela sua passagem e, logo, retornariam às suas brincadeiras sobre os trilhos, dormentes e, também, um pouco de brita espalhada pelos limites do percurso.

 Sua mãe já estava acostumada com as incursões dos dois lá pelo pátio da Estação. No começo ficava preocupada e apreensiva; eram muito pequenos e, por isso, talvez, temesse por eles. Porém, com o tempo, foi-se acostumando; por ali terem nascido e, assim, estarem crescendo, teriam criado lá os seus próprios meios para as brincadeiras e passeios por aquelas imediações.

   Depois que adoeceu, a mãe viu-se obrigada à internação na Capital. Naquelas cidadezinhas do interior a situação era precária com relação à saúde. Não que na Capital os cuidados fossem melhores, mas, os equipamentos, de qualquer forma, eram mais modernos e ela precisaria, mesmo, se submeter a uma série de exames. Sabia que seu caso era um tanto grave e, então, se deixou levar. Costumava cuidar de toda a lida da casa. O marido, nem que quisesse poderia ajudá-la, pois o trabalho lá no seu emprego lhe consumia o dia inteiro. Pelo que ganhava, teria que ir levando daquele jeito, mesmo. Mais, bem mais do que oito horas por dia. Mas, precisava “engordar” o salário para poder alcançar um valor que garantisse a sobrevivência dos quatro.

 Calito, apesar de seus dois anos a mais, estava somente uma série à sua frente. Mesmo assim, ela, por vezes, se valia do irmão para que a ajudasse nalgumas lições de casa. Isso, eles faziam, até, sobre os trilhos. Andavam, praticamente, sempre juntos. Uma aproximação natural, desde a casa e o gosto pelas mesmas brincadeiras e passeios por aquelas bandas. Por mais que saíssem por outros lugares ali do bairro, acabariam o dia no pátio da estação da Rede Ferroviária.

Depois que a mãe morreu, por algum tempo acreditava-se que os dois pequenos pudessem cuidar da casa, além de freqüentarem a escola. O pai, como de costume, chegava a casa somente à noite. Não teria condições de estender, ainda mais, o seu horário de cada jornada. Assim que – sua tia Amélia foi quem conseguiu – numa alternativa ou possibilidade de continuarem ir tocando a vida, seu pai resolveu por mandá-la para o internato. A cidadezinha, onde ficava o internato, era logo ali, ao lado de onde morava. Porém, apesar da pouca distância, se sentia longe. Tudo o quanto se acostumara - principalmente a companhia de Calito - lhe escaparam, de uma hora pra outra. Calito ficou com o pai e tinha uma vizinha que passou a ser uma espécie de empregada-faz-tudo; permanecia algumas horas na casa, até o momento em que Calito saía para a escola. Depois da escola, como era costume, continuava com os seus passeios lá pelo pátio da Rede Ferroviária. Assim como acontecia com a sua irmã, sentia falta da companhia e, também, das coisas que haviam criado para passarem os finais de tarde. Depois de alguns anos, quando o pai deixou aquele emprego, resolveu vender a casinha e mudar-se para a cidade onde ela continuava, já pelo terceiro ano, no internato. A situação era quase a mesma. Porém, nos fins de semana, pelo menos até que acabasse o ano, poderia ir para casa. Mas, já não era a mesma coisa. Por vezes, até preferia ficar lá no internato, mesmo. No internato tinha as suas colegas e sempre alguma coisa ou outra para arrumar, as quais iam se acumulando durante a semana.

  Foi-se tornando uma moça e, depois, uma mulher, quase independente. Quando começou a namorar com o Juliano, que morava lá em sua cidade natal, sentia que usava aquilo somente como uma válvula de escape. Precisava tocar a vida. Calito, agora, demonstrava outros interesses, ir para a Capital, onde gostaria de tentar uma boa faculdade. Seu pai, depois de seu novo emprego, acomodou-se por ali. Quando se casou com Juliano, voltou a morar em sua cidade. Aos seus olhos, porém, parecia outra. Mesmo que andasse pelos mesmos lugares de quando ainda era pequena, já não os sentia mais do mesmo jeito. Foram-se com o tempo. Juliano era um bom companheiro, porém, nem por longe imaginaria que ela já não tinha o menor entusiasmo por qualquer coisa que a vida estava a lhe apresentar. Deixava o tempo passar, apenas. Ainda tendo que dissimular a sua inconformação.

   Era como se estivesse em outro lugar. Outras pessoas, outras atividades. Somente o que reconhecia era o aspecto físico da cidade, que muito pouco mudara. E isso só servia para lhe trazer certas lembranças e uma incômoda nostalgia. Tanto que sonhara o futuro como algo dinâmico a lhe empurrar para frente, trazendo novas experiências. Ali, estava patinando. Pior, retrocedendo.

   O agente da Estação, não que quisesse se intrometer aproximou-se – já tinha observado que ela estava a um bom tempo ali sentada – com a maior delicadeza, depois de perguntar se esperava algo, informou que naquele dia o trem não passaria pela Estação, somente nos dias pares da semana, incluindo o domingo. Ela agradeceu, como se tivesse plena consciência de estar ali sentada por todo aquele tempo, dizendo que ainda ficaria por mais alguns instantes (e pra si, que continuaria a rever as suas lembranças, enquanto a memória estivesse, assim, instalada).

  O senhor afastou-se, ela lançou novamente o olhar a um ponto qualquer e continuou a sua viagem.

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2 comentários:

Texto bem escrito que não só me fez "ver" as imagens descritas pela personagem, como também partilhar do vazio que ela sentia.

Tentei escrever antes, não consegui. Agradeço o seu comentário. Você me achou lá na Samizdat, e eu te visitei lá no seu blog. Continuarei a procurá-la (no seu blog).
Abraços, Otávio.

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