– Um copo de água, por favor – pede o homem.
E perante o olhar indiferente do empregado, ou interrogativo, ou apenas expectante numa normalidade de serviço, o homem confirma, a olhar o outro:
– Só isso, por favor.
E sorri-se.
Na plataforma do apeadeiro está um homem. Está a olhar a linha.
Chega um homem mais novo. Muito moço.
Não falam entre si. Nem se dão os bons dias.
Estão de costas voltadas um para o outro, quando o comboio chega.
No largo de uma aldeia, desembocam quatro ruas. Na que vem do lado da igreja, surge uma mulher. Vem andando para a única sombra. Quando chega debaixo da árvore, pára. Assim como quem descansa, a mulher coloca as duas mãos a segurar a barriga enorme. E fica um momento de olhos baixos a olhar a terra seca e amarelada que cobre todo o largo.
É dia dezanove de Setembro.
Sabem disso a mulher prenha e o homem que pede água e o empregado atrás do balcão e os dois homens no apeadeiro.
Talvez não o saiba a mulher que dorme entre duas estações.
Mas sabe-o o homem que verifica os bilhetes no comboio.
Dia dezanove de Setembro. Meio-dia.
O comboio pára no apeadeiro.
Chega uma ambulância e um carro da polícia. Um polícia impede um dos homens. Barra-lhe a passagem a tapar a porta com a mão.
– Não pode entrar no comboio– diz ele.
E o homem grita:
– Vou buscar a minha mulher.
Um homem mais novo vai perguntar na bilheteira:
– Este comboio segue viagem para norte?
A menina da bilheteira não responde: ela não sabe.
Dia dezanove de Setembro. Meio-dia.
Uma mulher muito jovem dá à luz uma menina.
Está sozinha. A menina chora.
A mulher tira a maminha de dentro da camisa e mete o bico junto à boca da criança. A criança tenteia, a balançar a cabecinha numa busca, e depois faz um ruído muito intenso e muito rápido. A criança chupa o bico a sugar o leite.
A mulher diz em voz baixa, a falar com a menina:
– O pai vem daqui a pouco, no comboio.
Dia dezanove de Setembro. Meio-dia.
Num comboio que segue para norte, uma mulher morre na carruagem onde não segue nenhum outro passageiro.
O revisor entra.
– Por favor – diz assim, e estende a mão, que é um gesto de pedir o bilhete.
A mulher não se move.
O revisor percebe que a mulher está morta e vai pedir ajuda pelo corredor.
O comboio está quase a chegar ao apeadeiro.
Dia dezanove de Setembro. Meio-dia.
– Daqui a pouco chove.
Diz assim o homem que pediu água. O empregado coloca em cima do balcão o copo cheio e aponta para a plataforma.
– Antes que venha o comboio não há-de chover – diz ele.
O homem emborca o copo de uma só vez e estala a língua. Quando pousa o copo no tampo de madeira faz-se um ruído imenso. E o homem pede:
– Se puder, dê-me outro.
O empregado enche o mesmo copo.
– Chegou o comboio – diz, a olhar para o apeadeiro.
E o homem, a beber o segundo copo, sorri-se.
– Agora vai chover – diz ele a sair para a torreira do sol.
***
– Acudam.
É o grito de Elvira que não é escutado.
Um berrar de desespero a refractar-se como o calor no chão ardendo.
Nem o cão por perto, que foi com o rebanho.
Elvira desfaz-se em sangue a parir um novelo. É uma menina. E Elvira nem consegue sorrir-se de lhe nascer a filha. Ela a cortar a tripa ensanguentada com os dentes. Felizmente que os tem sadios. E descai-lhe das mãos a metade de tripa que está presa ao corpinho. Elvira logo a agarra. Prende-a num nó que faz com o gancho que tira dos cabelos. A menina num vagido lento e finalmente o grito, o choro. Elvira num esforço pendura-a na mão esquerda. Fica a cabeça da criança a bambolear no espaço como sendo um baloiço. E logo Elvira a enrola no lençol da cama e tenta repousar um pouco.
Mas crescem-lhe dores mais largas, mais intensas. Dores desnecessárias, pensa Elvira num temor danado de que possa ser outro. Mete a mão lá dentro. Dói-lhe. Tira o braço empapado de vermelho. Faz força com as mãos no ventre. Faz força de novo. E, a parecerem postas de sangue, ela expele. Sai-lhe a fressura como sai numa gata, entre cada gatinho. Elvira deixa que aquela pasta, a sujar vermelho, caia pelo chão. Não a come como fazem os outros animais. E sucumbe num sono que nem é inteiro: ela atenta à menina que dorme.
Elvira há-de dar-lhe peito. Primeiro será uma aguadilha. Ela sabe. Olha a menina. Há-de ser Constança, pensa Elvira.
E a ver o relógio acha que Ernesto demora a vir no comboio.
***
Florinda veio de madrugada. Nove horas de viagem.
O médico dissera, benévolo, a não querer que ela fosse:
– Vai, mas volta, Dona Florinda, que a senhora precisa tratar essa garganta.
Um tumor que lhe impede a respiração. Sobretudo a dormir, Florinda arfa e quase sucumbe de falta de ar. Tinha aquilo desde há muito. Piorara. Dorme sentada e nem assim dorme um sono inteiro. Diz-lhe o marido que ela acorda a fazer esgares, que é um sono em sobressalto. Vinha de consultar o médico e ele fora peremptório:
– Opera-se e fica boa. Amanhã, se quiser: tenho bloco.
Mas Florinda preferiu ir ver o marido. Que António não tinha o hábito, e eram muitas horas de comboio e depois o táxi e a balbúrdia na cidade. Florinda disse ao médico que iria a casa antes da operação: que o Senhor Doutor marcasse para mais tarde, se fizesse favor.
O médico insistiu, que demorar podia ser fatal. Florinda sorriu-se. Uma semana ou duas, o tumor esperaria, depois de tantos anos.
Florinda ainda ouviu o ruído que fazia a maquineta a furar os bilhetes.
Mas engasgou-se, tossiu um pouco, e já não deu pelo homem a dizer por favor e a estender a mão.
***
Nem era seu costume parar por aqueles lados quando ia em viagem, mas naquele dia saíra muito cedo e aquele fim de manhã estava muito quente. Um mês de Junho dos diabos, pensara Januário a entrar para pedir um copo de água.
O empregado deve ter estranhado que pedisse assim, apenas, e ele achou piada à cara do rapaz e insistiu, e dobrou o pedido.
E afinal, o moço nem era antipático. E não é todos os dias que se conhece alguém que sabe se chove pelo horário do comboio.
Depois de Januário se ter inteirado da razão do alarido no apeadeiro. Depois de saber que no comboio tinha morrido uma mulher: coitada! pensou Januário e nem se aproximou, que ele estava de passagem, ninguém sabia quem era, o que fazia.
Depois disso, choveu que Deus dava. Choveu todo o caminho.
O comboio a ficar retido e o rapaz, junto à bilheteira, a querer ir mais para norte: duas estações. A mulher tinha todas as luas duma primeira gravidez. E agora aquele imprevisto. O rapaz pediu: dá-me boleia?
Januário levou-o. Fez até um desvio. E chegado à aldeia foi deixá-lo em casa. Percebeu : o mulherio viera em socorro. Diziam em alarido que Elvira e a filha estavam bem, mas tinham ido para o Hospital da Vila.
Januário levou aquele pai ansioso. Que a menina seria Constança, disse o moço.
Que nome lindo! pensou Januário já a seguir viagem para o seu destino.
***
Ao outro dia, os jornais noticiaram. Januário Mateus, médico cirurgião, encontrado com um tiro no pescoço. numa casa que possuía no norte do país. Deixou um bilhete
Estava escrito a lápis num pedaço rasgado de papel de embrulho, perdoa-me Constança, minha querida esposa.
3 comentários:
Amiga, você me tira o fôlego.Fiz um zigue-zague na leitura e coloquei todos os personagens em uma linha reta. Então, percebi que não havia linha reta; eram mesmo os tristes e tortos caminhos da tragédia humana. Eu fico pensando é como você consegue... Há que ter mesmo muita sensibilidade para costurar as tramas com essa linha de seda. Parabéns!
Potente, a peripécia do parto solitário.
Nunca um homem se aproximará do conhecimento orgânico dessa experiência.
Potente, a peripécia do parto solitário.
Nunca um homem se aproximará do conhecimento orgânico dessa experiência.
Postar um comentário