Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 15 de março de 2012

bilhetes para o teatro


Filomena para ali embasbacada com a certeza, vinda nem sabe de onde, que se esperar um pouco, se lhes der azo, surgirá um batalhão. Bichinhos nojentos, congemina Filomena a imaginá-los aos centos nos rebordos húmidos, nos cantos escusos do acanhamento da sua cozinha.
Tinham que sair dos ninhos justamente nesta noite, infeliza-se Filomena Mónica, uma vidinha de casa-trabalho-trabalho-casa, a  desenhar a certeza de que não será hoje que verá as luzes a baixar, mornas, e o pano de boca a correr vagaroso como pestanas a dependurarem-se no olhar da sala.
Filomena que comprou dois bilhetes na primeira fila para ver aquela peça de teatro.
Leu, algures, que aqueles bichinhos cor de merda comem despojos nos lábios do humano que durma num descuido.
Um deles desiquilibra-se e cai sobre o metálico do fogão.
Filomena arrepia-se, mas reage. Pega num pano, largado por ali à toa, humedece-o no correr da torneira, e vai apanhar o animal sem que lhe toque.
O nojo eriça-lhe os pelos dos braços.
Com o cotovelo carrega no botão e solta a tampa do lava loiça, desimpede o cano e, num cuidado imenso, coloca o bicho no sítio preciso para que vá por ali abaixo.
Depois olha o relógio: não terá tempo para exterminá-los e ainda ir ao teatro.
Na borda exterior da chaminé os bichos avançam vagarosos, e Filomena nota que a tinta está em mau estado: estrias, pequenas lascas, um branco mais para o amarelo com ar de cagado.
Sobe para um banco e repete os gestos de apanhar cada um dos animaizinhos com o auxílio daquele pano humedecido. E serão três vezes que Filomena sobe e desce. E serão quatro os bichos que ela joga pelo cano.
Que nem morrerão, pensa Filomena irritada com o incómodo que representam, ainda mais naquela noite.
Umas pestes andantes, rumina. Que nem que percam a cabeça, nem assim, deixarão de deitar ovos. Uns demónios. Umas almas penadas a infernizarem-lhe a noite.
E Filomena numa quase náusea deita o pano húmido no saco do lixo.
Irá exterminá-los, bicho a bicho, ovo a ovo.
Irá fazê-lo nessa mesma noite.
Os bilhetes do teatro que fiquem apodrecendo nas páginas do livro onde os guardou desde ontem, depois do escritório:
 – Dois, na primeira fila  – tinha ela pedido.
Não os há-de rasgar: que os bilhetes fiquem para recordar que, num dia que seria hoje, tinha tido a intenção de ver representada a peça que já leu várias vezes. E que tinha querido fazer surpresa ao Francisco que também gosta de teatro.
Dará jantar ao filho, e pedirá ao marido que leve o menino: que a avó fique com ele e lhe dê almoço no dia seguinte. Terá assim tempo de desinfectar tudo, de envenenar os cantos, de descobrir os bichos ainda a sair dos ovos. E Filomena sente o nojo escorrer-lhe pelo corpo, mas não desiste.
E não irá dizer-lhe como tinha imaginado: Francisco, comprei dois bilhetes para o teatro; deixamos o menino com a tua mãe, sim, Francisco?!
Não lhe dirá isso.
Irá falar-lhe apenas que é necessário exterminar os bichos.
Há-de dizer-lhe:
– É urgente exterminá-los. Será hoje mesmo. Levas o menino para a tua mãe, sim, Francisco?!
E o marido há-de apressar-se a fazer o que é esperado, ele que não saberá que, se não fossem aqueles animais, passaria a noite no teatro.
Filomena há-de ouvi-lo ao telefone:
– Mãezinha, pode ficar com o menino até amanhã depois do almoço?
Francisco a desfazer na totalidade a surpresa que Filomena tinha para ele.
– Não se preocupe, mãe, não é nada demais; eu depois conto. Pode ficar com o menino? pode?
Será assim que o marido irá responder, que a sogra terá perguntado:
– Alguma coisa grave, filho?!
E Francisco desligará o telefone, não antes de dizer, assim como que a colmatar um esquecimento que nem deveria: dê um beijo ao paizinho.  E dirigindo-se-lhe:
– A minha mãe vai almoçar com a tia Gertrudes, mas que sim, que levemos o menino.
E Filomena tirará da cómoda um fatinho azul e uma tshirt com risquinhas e mais uma outra, ambas em tons de azul, e nem dizeres, nem desenhos, e que nem sejam cor de rosa e nem sequer amarelinhas. Que a tia Gertrudes não possa dizer: que mau gosto que tem a tua nora!
Filomena rebuscará na gaveta umas peúgas.
– Cá estão elas! – dirá ao encontrá-las.
E há-de colocar as meinhas no saco juntamente com o pijama e outras peças de roupa, e o urso de peluche. E a chupeta, que o menino ainda a pede quando dorme.
De um lado para o outro, irá até esquecer o extermínio dos bichos e os bilhetes do teatro.  Mas logo há-de sorrir um soriso desconsolado, ao pensar na surpresa que teria feito ao marido.
Filomena que há-de pedir:
– Traz remédio forte, Francisco.
E que o traga em gel, há-de recomendar, que é o mais indicado, terá lido Filomena, ou terá ouvido em algum programa. Ou terá visto na net.


Ela decidida a eliminar todos os bichos nessa noite, grita para que o marido a oiça:
– Francisco, temos baratas na cozinha!




Share




3 comentários:

Há pessoas que "se infelizam" por não elencarem as prioridades para uma vida feliz. Filomena devia ter ido ao teatro e deixar a cozinha ser tomada pelas baratas.

Pois eu também iria ao teatro! Odeio essas nojentas! E deixar que acabassem com o meu programa? Nunca! Mandava o filho para a avó, colocava veneno em toda a cozinha e recolhia os corpos na volta! Fátima, é nojento mas impagável esse conto sobre essa Filomena Mónica paranóica!

a gente tem que (deve...sai-lhe) falar nos diferentes casos... e a mim veio-me à ideia esta e será pois porque ela existe e se veio aninhar aqui no teclado para que se fizesse redimida desse dia de pecado ... quiçá de onde vêm os contos...rss

Postar um comentário