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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

novíssimas de Bentinho Casmurro escrevendo ao filho



Maria de Fátima



Itaguaí, 2 de Janeiro de 1885

Ezequiel

São seis horas. Escureceu há pouco. Lá muito ao longe, ladra um cão. O mais, é o tic-tac de um relógio e o meu respirar que, desde há tanto, chia como dobradiça a pedir óleo. Tenho o papel desta carta suado sob a mão e no entanto estamos no pino do Inverno. 
Escrevo-lhe Ezequiel, para lhe dizer das minhas demandas, do derradeiro modo que encontro para aquietar o meu desassossego. Que eu tenho tentado: escrevi até um livro. Mas desesperei tantas vezes, Ezequiel! Que eu tirei-lhe o carinho que lhe seria merecido e tudo por uma incerteza que ainda hoje me arrebenta o peito. Quando me visitou, há um ror de anos, não terei agido decerto como um pai que recebe um filho. Você estava então deitando corpo. Sei que depois disso foi arqueólogo na Jerusalém de Jesus Cristo. Que padeceu de umas febres. E eu que nem sei se é vivo se morto, sigo no anseio de encontrar em mim o sentimento que me tivesse deixado dizer-lhe eu amo-o, meu filho. Dizer assim numa certeza.
Mas não foi assim em outro tempo, e não o é agora que lhe escrevo.
Perdoe-me se puder, Ezequiel.
Você estava um homem feito, e eu tremi nas miudezas do meu corpo. Arrepiaram-se-me os pelos mais recondidos, que era Escobar quem se estava meneando à minha frente: os olhos, o pendor do corpo, o sorriso amplo. Paizinho, dizia você, e eu seco, granitoso, a soçobrar ao ciúme, a tourear um ódio. Como podiam dizer que era delírio de meu espírito, se era Escobar que eu via?! você igualinho a Escobar Ezequiel já morto.
Tentei encontrar na escrita o alento que a construção meticulosa da casa não me trouxe. A casa, a semelhar nos menores pormenores a de Matacavalos, não me deu o que esperava dela em noites de serenidade.
E, hoje, ando a tentar serenar essa dúvida espetada no meu espírito, a que tomou forma nas exéquias de Escobar. Ele morto e sua mãe de olhos embicados. Os olhos de Capitú melosos a chisparem um brilho danado ao velá-lo. E depois que foi o enterro, fiquei-me infernizando. Foi quando o meu desassossego criou raízes, se instalou para sempre.
Ía você crescendo, Ezequiel, e sua mãe, em gestos amorosos a olhá-lo. Capitú a acirrar-me, ouvia eu:
– Olha como o nosso filho parece o saudoso Escobar. Tá vendo o nosso menino, Bentinho?
Capitú a mostrar-me a facilidade com que você, pequenino, lidava com as quatro operações, os trocos, e as sucessões, tal e qual Escobar que fruia com os números. E eu vendo isso, via muito mais: via Escobar tal e qual no seu rosto, como mais tarde o veria quando você deitasse corpo.
– Igualzinho, nisso e no demais – dizia eu, casmurro.
E ao ritmo a que você cresceu, cimentou-se em mim a certeza na traição. Tanto, que o afastei de mim e consigo partiu também sua mãe: Capitú que Deus cedo levou para o seu seio.
Tenho sofrido muito, Ezequiel!
Finalmente, faz dois meses, decidi-me enveredar por um cuidado médico. Iria consultar um doutor da mente. Ouvira dizer que pela Europa ocorriam milagres. Consultaria Simão Bacamarte de quem tanto se falava por estes lados. E fiz meus passos na estrada que conduz à Casa Verde. Eu em mais uma demanda sincera de lenitivo para este meu estar sempre entre: foi assim ou teria sido de outro modo?
Ai, Ezequiel! eu aqui escrevendo devaneios, ditos que não terão para si qualquer interesse.
Deixe-me comunicar-lhe que, se um destes dias vier ao Engenho Novo, não estranhe que lá encontre apenas o criado. É na Casa Verde que doravante resido.
E como eu queria que viesse! Saber de si se algum dia escutou segredos. Se, por um acaso de estar passando, terá ouvido vozes para lá de uma porta como eu ouvi, naquele dia de há muito, Dona Beatriz a conversar com José Dias. Que terá sido aí que começou o meu engano. Eu a escutar José Dias dizer: eles estão de namoro, Dona Beatriz, aquela menina é o demo! José Dias falava de mim e falava de Capitú, e nem sei se de outro modo eu teria sequer imaginado casar-me com a que seria sua mãe.
Também ouviu segredos, Ezequiel?
Ouviu Dona Capitulina conversando? e com quem?! conte-me.
Terá ela dito que não sou seu pai?
Ou terá dito que eu vivia inventando traições?
Ou você terá escutado sua mãe falando com Sancha: elas duas juntas a chorarem Escobar?!
Ai! Ezequiel, como sofro!
Tanto ou mais desde que o doutor Bacamarte me faz ver tudo de outro modo: que terei sido eu e não Capitú quem andou traindo.
Diz-me o alienista que tudo se embaralhou de um sentimento ainda mais escondido do que se fosse segredo. E a dizer assim Simão Bacamarte batia-me com dois dedos no joelho:
– Bento, isso foi um amor que o senhor escondeu até de si mesmo, meu amigo! 
E o médico naquele jeito de revirar os olhos e ir fazendo gestos largos com as mãos, acrescentava:
– Meu filho, Capitu pode ter pecado, mas é a si mesmo, Bento, que precisa perdoar-se!
Que a mente tem revolteios e dobras e desvios feitos de tecidos finos, que em se lhe falhando um quê, pouco que seja, um tudo nada menos de oxigénio, um entrefolho que tenha ficado descosido na hora do nascer, e dá-se a mente em ver o que ninguém mais vê. Delírios, dizem os demais. E no entanto, é tanta realidade como a de outro que afiance o contrário, explicou-me assim o médico:
– Para si seria demais saber Escobar nos braços de Capitú! Já bastava assistir, dia após dia, aos afagos dele e de Sancha! Terrível ainda mais seria ver Escobar nas mãos das duas: Que Capitolina fosse castigada.
Assim me segredou Simão Bacamarte, tão baixinho, que eu quase juro ter sido eu que discorri. O alienista, prosseguiu:
– Não tenha dúvida, Bento. Você preferiu viver sob o efeito de um delírio. Preferiu inventar a traição de Capitú, e ver Escobar no corpo de seu filho. Foi uma escolha do seu espírito para afastar dos seus olhos e dos olhos de todos a realidade dum amor que nem  a si mesmo consentiu.
E o médico ainda rematou sobre o assunto:
– Que na hora do velório, seria você, Bento, quem olhava, perdido de amores pelo Escobar morto no caixão. Você, Bento, e não Dona Capitulina, sua esposa!
E a dizer isto, pareceu-me ver o rosto do alienista ironizar-se num sorriso.
Creia-me, Ezequiel, em todos estes anos, deve ter sido o único momento, um lapso, um instante, em que me senti em sossego comigo e com o mundo: finalmente eu sabia quem tinha sido o alvo de meus amores e ódios e ciúmes, sentimentos intensos e contraditórios que quase me foram endoidando. Que me fizeram tristemente perder de si.
O médico de pé, como ficava sempre nas longas horas de um dia e depois outro, e mais outro dia em que repetidas vezes fui à Casa Verde. Simão Bacamarte a indicar-me:
– Melhor será que fique sob o efeito de pastilhas e banhos e o demais. Aconselho-o que se interne, amigo Bentinho.
Simão Bacamarte a empregar o diminutivo, a mostrar-se íntimo, já me ía encaminhando para o quarto que me acolheria na Casa Verde. Ele quereria estudar a fundo o meu caso, que, disse-me, seria digno de um artigo em revista da arte.
Aqui tem Ezequiel.
Agora sou pensionista do moderno edifício que é a Casa Verde onde está sempre chegando muita gente da cidade e arredores.
Depois de ler esta carta, pode rasgá-la sem remorso.
Ou deite água em cada folha e deixe que a tinta escorra: serão lágrimas deste que, se foi seu pai, nunca o soube ao certo, e por isso nunca aprendeu de um amor que lhe dedicasse.

Despeço-me até sempre
Bento Santiago

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9 comentários:

Este texto eu já conhecia. Do Desafio 6. Na crítica da semana, Marco Antunes chamou-o de: "melhor Carta do Desafio até aqui". Um texto de nuanças machadianas vindo de além-mar. Muito bom!

nem me lembrava disso! obrigada de ter dito: mudei uns nicos que me pareceu que precisava...mas se o Marco disse nem devia ter mexido :)

Acredito que quem ler esta carta, ou este conto, ganhará muito se conhecer as obras de Machado de Assis, Dom Casmurro e O Alienista. Conheço o segundo, mas não o primeiro. Admiro a intertextualidade e conheço o gozo que dá escrever textos que a usam. E o escritor tem essa liberdade divina de misturar tramas e personagens, além de criá-las.
Acho o Bentinho, se não com uma disposição, pelo menos com um discurso muito feminino, na ternura e no pedido de desculpas. Não conheço o personagem original, mas esperava-o menos conciliador. Mas até os violentos se enternecem.

mas esse (fixe que se tenha notado!) "amolecimento" do Bentinho, Joaquim, esse "feminino", era o esperado na volta que dou ao personagem - uma volta arrojada diga-se! fico contente ! e leia D. Casmurro que vai ver que vale a pena

Faz tempo que li "Dom Casmurro", mas acredito que a carta tenha feito jus ao caráter melancólico e resignado do protagonista.

A suposta traição de Capitu é o assunto literário que mais gerou teses e dissertações acadêmicas no Brasil, é um tema inesgotável, que rende boas obras (como esta sua, Maria), e outras não tão boas.

É uma pena que o mestre Machado seja tão pouco conhecido fora do Brasil, e tão pouco lido mesmo no Brasil. Sem dúvida, é um dos grandes (senão quando obrigação de provas e vestibulares).

Abraços.

Muito bom, Maria. A ideia de mesclar as duas obras machadianas e a própria explicação para o comportamento de Bentinho / Dom Casmurro são muito bem pensadas.
É um sair pela tangente nessa história que, como bem lembrou o Henry, é motivo de muitas discussões no meio literário brasileiro - tanto que, por vezes, tem-se a impressão que os personagens realmente existiram, e que tem de haver uma fórmula para descobrir se Capitu, afinal, traiu ou não traiu...f

Muito bom, Maria. A ideia de mesclar as duas obras machadianas e a própria explicação para o comportamento de Bentinho / Dom Casmurro são muito bem pensadas.
É um sair pela tangente nessa história que, como bem lembrou o Henry, é motivo de muitas discussões no meio literário brasileiro - tanto que, por vezes, tem-se a impressão que os personagens realmente existiram, e que tem de haver uma fórmula para descobrir se Capitu, afinal, traiu ou não traiu...f

Agora que é eu vi que o meu parênteses ficou no lugar errado...

Onde está escrito:

"É uma pena que o mestre Machado seja tão pouco conhecido fora do Brasil, e tão pouco lido mesmo no Brasil. Sem dúvida, é um dos grandes (senão quando obrigação de provas e vestibulares)."

Leia-se:

"É uma pena que o mestre Machado seja tão pouco conhecido fora do Brasil, e tão pouco lido mesmo no Brasil (senão quando obrigação de provas e vestibulares). Sem dúvida, é um dos grandes."

Senão dá a impressão que quando se tem de ler Machado para provas, ele deixa de ser um grande autor. :D

já é agora um pouco adiantado da hora para fazer um comentário mais detido (que o texto merece). resigno-me a dizer o quanto gostei dele. obrigado, maria!

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