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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Cinzas

Quando o último bumbo bumbou e o repenique parou de repenicar,
Batista levantou-se da beira da calçada, lépido e esguio como se nada tivesse acontecido. Caminhou firme pela rua, desviando de bêbados, latas de cerveja e poças de restos de chuva e urina. Tomou o rumo da ladeira sinuosa, quando foi recebido por paralelepípedos mal calçados. Seus pés ardiam. Suas pernas formigavam. O sol já dava sinais de inclemência. Suores brotavam do seu rosto, desciam pela nuca, corriam pelos braços e peitos nus.

Batista estava firme. Passo a passo, ao ritmo de um batuque imaginário,
era acompanhado de uma miscelânea de pensamentos e lembranças dos últimos cinco dias.
A colombina encantadora, a passista de ancas exuberantes, a socialite do camarote,
a turista sueca de cintura dura, a universitária do Leblon de tamborim na mão,
a morena mulher de verdade travestida de travesti no baile alegre,
todas, todas por onde se fartou de amar urgente e sem compromisso
passeavam desnudas seus sorrisos, cheiros e sons de sexo na sua memória recente,
efervescente e atormentada.

Ao chegar no topo do outeiro, tudo se dissipou.
Contemplou o bom e velho portão de madeira, não puxou mais que três vezes
a corrente do pequeno sino, quando um monge apareceu:

- Pode entrar, Irmão Batista. Esta casa é sempre sua.

E Batista não perdeu tempo. Banhou-se na bica do pátio, recebeu vestes humildes,
calçou sandálias. Comeu pão, bebeu água em cuia. Caminhou contrito até a capela,
esperou a missa, onde seguiu todos rituais: cantou, orou em voz alta,
elevou as mãos aos céus, abraçou o próximo e recebeu a comunhão.

Da pequena igreja, fisionomia contrita, desceu uma escadaria soturna.
Refugiou-se no claustro, onde por lá resolveu ficar recluso a tempo perdido.
De joelhos, olhos fechados, cabeça baixa, terço na mão. Meditando, orando, rezando.
Para regenerar a carne e lavar a alma o quanto fosse preciso.
Até que o próximo carnaval chegasse.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
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