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sábado, 21 de janeiro de 2012

Purgatório

Está se vendo que você nunca se apaixonou, não é, meu caro? Dizem que paixão é uma coisa avassaladora, uma fábrica de loucuras. O Frejat ilustrou bem isso naquela música, como era mesmo a letra? Deixa pra lá. Isto não deve ser do seu interesse, não é mesmo?
Apesar de estar apaixonado julgo que, o que fiz por Lívia, não foi uma loucura de amor, pensei inclusive estar agido da maneira correta e olha o que me aconteceu? Aonde vim parar? Caso houvesse cometido um desatino amoroso, certamente a história teria sido outra e hoje estaríamos juntos e felizes curtindo o nosso amor.
Confesso que a primeira vez que eu a vi, Lívia não me despertou a mínima atenção. Mal a notei, diluída naquele vai e vem de gente transitando dentro do restaurante de comida a quilo da sua família. Na verdade, eu estava faminto e os predicados do sexo feminino me interessavam menos do que um suculento prato de comida, baratinha, como mostrava o cartaz do lado de fora do estabelecimento.
Ela era a encarregada de servir as bebidas do restaurante. Ficava de um lado para o outro zanzando com uma bandeja apinhada de garrafas e copos, sempre comandada aos berros por aquela senhora de maus modos que tudo fiscalizava por detrás da balança onde os pratos eram pesados. “Lívia, não esqueça o refrigerante do moço lá no fundo! Vamos logo, menina, deixa de preguiça! Você é uma estabanada mesmo, não serve pra nada!” Elogios daquela mulher, eu creio que minha amada nunca tenha ouvido.
Compunha o resto da família um sujeito mal encarado que ficava no caixa, invariavelmente trajando a camisa do Botafogo. Pouco falava, muito grunhia para os clientes ao devolver o troco.
A comida não era grande coisa, mas por aquele ser o restaurante mais próximo do trabalho, tornei-me seu habitué e, pouco a pouco, fui reparando na beleza rústica de Lívia. Tinha o meu amor o rosto redondo, sardentinho, decorados com dois olhos chamativos, nunca soube ao certo serem verdes ou azuis, e um cabelo cacheado, ruivo e há tempos longe de um cabeleireiro. Seu corpo era de uma leve obesidade disfarçada por uma coleção de calças jeans que modelavam sensualmente os quadris. O busto, farto, se escondia atrás das camisetas t-shirt de algodão em cores e estampas berrantes. Aparentava pouco mais de 18 anos e uma enorme vontade em largar a escravidão familiar a que era submetida.
No final de uma semana eu já era um homem apaixonado. Contudo, nossa aproximação foi lenta e gradual. Trocávamos parcas palavras e fartos sorrisos maliciosos sempre que Lívia vinha servi-me o refrigerante. Certa vez, fui até audacioso e toquei de leve sua mão enquanto ela depositava o copo sobre a mesa. Lívia assentiu ao toque, contudo, não deixei de notar que ela procurou com olhos certificar-se de que, nem a mãe e o irmão haviam reparado em minha ousadia.
 No dia seguinte à cena, ela disfarçadamente deixou em minha mesa um pedaço de folha de caderno onde estava escrito “eu te amo” em garranchos quase infantis. A singela frase vinha acompanhada de dois corações entrelaçados mal desenhados. Feliz como um adolescente correspondido, guardei no bolso o recado ao mesmo tempo em que acompanhei com os olhos Lívia sumir em direção à cozinha do restaurante. Decidi que não passaria daquele dia mas, homem feito que era, desejei  que as coisas fossem feitas às claras. Não estava em idade de namoros escondidos.
Resolução tomada, deixei a mesa onde costumeiramente almoçava e fui ao encontro do irmão de Lívia. Ele parecia mais trombudo do que seu estado normal. A mãe encontrava-se seu lado na caixa registradora, certamente conferiam a féria do dia e não gostariam de ser incomodados, porém, eu tinha que falar com os dois acerca dos meus propósitos com a moça, como eu havia dito, desejava agir da maneira correta.
A senhora me recebeu munida de um sorriso amável, pois já se acostumara com a minha presença no restaurante. O botafoguense mal tirou os olhos das contas que fazia numa calculadora. As palavras jorraram da minha boca descontroladas: “Bem, já faz algum tempo que almoço neste estabelecimento e só tenho elogios à comida aqui servida, mas, não é disso que desejo falar com vocês. É sobre Lívia. Sei que pode parecer estranho, mal nos conhecemos, mas, o amor tem dessas coisas. Sou um sujeito decente, respeitador e minhas intenções com a menina são as melhores possíveis. Preferi falar com os dois antes até do que com ela que, desculpem a o modo de me expressar, já tem correspondido a minha paixão. Gostaria de pedir permissão a vocês para..”.
Nunca imaginei que o botafoguense guardasse uma arma atrás do balcão. Aliás, deveria sim ter imaginado, pois a cidade andava muito perigosa naqueles tempos. Só não poderia supor que o sujeito era o marido de Lívia e a aquelas senhora tratava-se na verdade de sogra da moça. Mas como é que eu iria saber? Os três eram tão parecidos. O cara nem me deixou explicar o lamentável engano. Os tiros foram mortais. Nem cheguei a experimentar sofrimento. Descobri que se perde a consciência quase que imediatamente com várias balas alojadas no seu cérebro. Agora estou aqui, neste purgatório, esperando a minha triagem para a morada final. Você ainda vai demorar muito a decidir, meu caro? Veja bem. Fui um sujeito honesto, cumpridor dos meus deveres, bom cidadão. Apenas traído por uma paixão arrebatadora, não sabia que Lívia era casada. Também, ela poderia ter me dito, não é verdade? O senhor é um anjo? É o responsável por este local? Amar a mulher errada não é um pecado que justifique minha passagem para inferno, não é verdade? Poderia, por gentileza, avaliar com simpatia a minha situação?

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Zulmar Lopes
Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem um punhado de prêmios literários, a maioria de nenhuma importância. Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”. Finalmente concluiu o maldito romance cujo pano de fundo é o carnaval carioca e está na expectativa de que alguma editora incauta se atreva a publicá-lo.
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