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sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A deusa da chuva

E choveu o ano inteiro em 21 minutos.

Enquanto o ônibus não chega, perambulo os olhos pela rua, cantarolando as águas de Tom Jobim, e encontro Cristina num cantinho de paus, pedras, restos de toco, um toco sozinho. Não uma Cristina gente, morta ou viva, carente ou determinada, enérgica ou entregue à sorte impiedosa do verão, da natureza e do descaso. Mas uma Cristina de papel, plastificada, enlameada, materializada por um CPF sem rosto,
discreto e sujo, que me dá pistas sobre sua pessoa.

De cara, descubro que é uma mulher. Está escrito em letras gagas de uma Remington: Cristina Vidal Sotero, ao lado um número borrado, e no verso uma assinatura legível e inspiradora. Decifra-me, diz o garrancho. Sou traço tosco de vítima do desprezo histórico que se tem pela educação dos pobres. Trata-se, então, de alguém que rala na vida, que não veio ao mundo a passeio. As maiúsculas tentando arabescos eruditos e as minúsculas finais apressadas tentando acabar com a lenga lenga que é para tanta gente assinar um documento.

Cristina não é um nome que defina idade. Mas não me parece uma pós adolescente, considerando que o CPF é daqueles beges e grandões, anteriores aos cartões azuis magnetizados que dormem com cartões de créditos nas carteiras ricas.

Vidal, o nome do meio, insinua que a dona do documento perdido possa trazer raízes ibéricas,remotamente francesas, mas a preguiça mental me leva a encurtar caminho da história e admitir que seja descendente de uma sinhá de além mar, que deu com os navios nas costas da Bahia, tendo envergonhado a família ao se enrabichar por um cafuso típico, indolente por parte de pai e fogoso por parte de mãe. E saíram, colonizado e colonizadora, às cópulas pelas alcovas a povoar a cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Na enésima geração nasceu Cristina. Claro que está tudo explicado: seu último sobrenome é Sotero, ó, ó, ó, digo isso meio girando repetidamente a mão direita com o polegar e o indicador em curva
formando uma pinça, o gesto vulgar que denota ligação infame, ó, ó, Sotero de salvador, polis de cidade, sacou? - adoro palavras cruzadas: nascido em Salvador, vertical, 14 letras.

Pronto. Definida a origem da criatura. Resta agora o quesito “o que faz na vida além de explicar que perdeu documentos na chuva”. A caligrafia me cochicha: talvez seja diarista, talvez costureira, talvez balconista, caixa de supermercado. Pode ser faxineira, trocadora, a moça do café,a rainha dos serviços gerais numa empresa próspera e socialmente responsável.

Nada disso. Que seja uma cozinheira, de forno e fogão, de panelas de ferro e de barro, uma Gabriela de cravo e canela, uma Dona Flor sem maridos aparentes.
Decidi. Sua moqueca é de arrasar, seu xinxim é de se lamber os beiços,
seu vatapá é um manjar de deus e do diabo, honra e glória dos Vidal Sotero,
que fizeram história nos sobrados do Pelourinho, manera no dendê, minha filha, minhas entranhas não aguentam mais tamanha perdição,
já basta o acarajé que me ofertaste e a pimenta que me ardeste.

Cristina Vidal Sotero já é íntima. Juro que descubro seu paradeiro.
Vou de rua em rua nas redondezas, de soleira em soleira, curioso tenaz,
encontro enfim a dona de história tão rica, dotes tão saborosos, sorriso generoso e um corpo surpreendente, esculpido por Jorge Amado. E me esvai a fala, aflauto a voz.

Você é Cristina Vidal Sotero?
Sim, senhor.
Estou mais perdido que seu documento.
O senhor achou? O destino achou.
Então entra, tem recompensa, vem provar o gosto que a baiana tem.

E diante de tantos encantos noite adentro, ouso retribuir com um mimo.

Cristina, sou herdeiro único de uma tia abastada,
que me deixou um domaine na Normandia.
Um quê, moço?
Um castelo na França, entendeu agora?
Pois prossiga, senhorinho formoso.
Indo direto ao ponto: quero levar você para morar comigo nas terras dos bons vinhos,
da culinária soberba e das vacas premiadas.
Mas eu não cozinho em francês, seu dotô.
Vai como minha mulher, há quem obedeça a suas ordens naquela vida boa.
E se eu sentir saudade do tempero da Bahia?
Mando trazer de avião.
E se painho der por minha falta?
Vem de avião também.
E como fica o calor da nossa terra?
Te aqueço, minha deusa, nos meus braços, nos meus abraços.
Mas não tenho CPF para tirar passaporte, moço, esse não presta mais.

Danou-se. Olho o documento encardido e inútil. Penso em entregar a um Guarda Municipal - deve haver uma porta escrita Achados e Perdidos em alguma repartição da Prefeitura. Imagino carregá-la no bolso, para sempre comigo, tenho tia abastada nada, sou um impostor, mas ofereço minha gaveta de moradia, meu quarto e sala é a Bahia, minha cama é o Pelourinho, me açoita, morena, vem, morena, vem seguir os desígnios dos santos do acaso, dos anjos dos sonhos, dos deuses da chuva.

Para tudo. Quem vem vindo agora é o ônibus lotado de realidade e juízo.
Escapando entre meus dedos, deixo Cristina carinhosamente no meio fio de onde veio.
No pau, na pedra, no resto de toco, no toco sozinho. E sigo, e subo, e suspiro, e sento no último banco. Estico meus olhos àquele documento, que, acho, me olha também. Fecha o sinal da esquina, providência para um teimoso raio de olhar.
Vejo na rua que ficou para trás um gari de perna fina, moroso e indiferente, passando a chuva a limpo,parando e olhando para um reles CPF jogado no chão.
Antes da vassourada de misericórdia, ele se abaixa, pega e lê: Cristina Vidal Sotero.

Tenho vontade de botar a cabeça pra fora da janela: tira a mão daí, moleque!

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


6 comentários:

Amei esse texto. Um simples CPF, hein? As "sacadas" das suas frases são incríveis. O crescendo do texto, igualmente. E aquela frase final... Ciúme da personagem? Haja imaginação.

Obrigado, Cinthia. A gente escreve é para, no mínimo, divertir as pessoas. Todo dia 20 estou aqui.

oh!!! há coisas na vida que a gente diz ainda bem que fiz desse jeito e não de um outro, e é como me sinto depois de ler este texto que me embeiçou tanto ou mais o CPF fez naquele moço!
danada de estórinha que pega a gente linha a linha
brigada por este pedaço de prosa, muito obrigada!

Estou adorando seus textos, êta chuva e CPF danados de bom, renderam uma uma gostosa e ilusória história, que me prenderam no inicio ao fim, claro, querendo saber como vai terminar???? Estou esperando o próximo.

Esse é o Zé Gui, cada vez melhor, um cracaço das palavras, que nos envolve e enleva, linha por linha.
Keep writing, Zé, keep writing.
Paulo Eboli

Fátima e Tetê, obrigado pelos comentários generosos. Vocês só aumentam a minha responsa!

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