Era uma vez uma Cigarra e uma Formiga.
A primavera era linda e a Cigarra, muito alegre, tocava e dançava o tempo todo.
A Formiga, muito disciplinada, andava ocupadíssima a amealhar para o Inverno que sabia que viria; enquanto a Cigarra dançava, a Formiga carregava bagos de arroz; enquanto a Cigarra cantava a Formiga carregava grãos de milho. E enquanto a Cigarra dormia, a Formiga arrumava a despensa, para lá caber mais.
O Inverno chegou.
A Cigarra, cheia de frio e sem nada para comer, bateu à porta da Formiga e pediu-lhe ajuda. A Formiga, quentinha e farta, disse-lhe suavemente:
"Quem te mandou cantar e dançar o tempo todo? Eu, minha cara, passei esse tempo a trabalhar que nem uma escrava para não estar agora na situação em que tu estás. Antes nunca te preocupaste com o teu futuro; agora, eu não vou dividir o meu contigo, pois é fruto de muito sacrifício."
A cigarra ficou espantada.
"Achas que eu devia ter estado a carregar bagos e grãos, em vez de cantar e dançar? Mas assim não haveria alegria, nem música para te acompanhar no trabalho... Assim ninguém se ria nem esquecia por momentos o filho doente. Assim ninguém faria nada absolutamente disparatado, ninguém faria nada absolutamente altruísta, ninguém faria nada absolutamente descontraído... Ninguém faria nada diferente de acautelar a própria barriga!
Desculpa, Formiguinha, desculpa. Sempre te vi tão séria e determinada, não fazia ideia que eras triste. Mas olha, alegra-te agora, alegra-te que tens a despensa cheia, a casa quentinha, já não há nada para carregar; podes agora esquecer o trabalho por um bocadinho."
Esquecidos o frio e a fome e galvanizada por aquela revelação, dançou e cantou como poucas vezes o tinha feito. Um espectáculo sublime a que nem o facto da formiga ter fechado a porta tirou inspiração e brilho.
Terminado o bailado, sorriu e tocou novamente à campainha. A Formiga não abriu a porta...
A Cigarra foi-se embora, sorrindo ainda.
Ainda hoje, na Primavera, em toda a aldeia e alguns arredores se dançam e cantam as melodias da Cigarra.
Da Formiga ninguém sabe nada - se calhar está lá, com o que é só seu.
3 comentários:
um reconto em tempos de crise ou fabulando apenas pelo gosto de dizer de outro modo
Gostei desta versão da fábula. É muito comum confundir alegria e vontade de festejar com irresponsabilidade. Cada um faz sua parte nessa vida. Trazer alegria ao mundo também é uma forma, muito digna, de trabalho. Daí os artistas, cantores, atores e - por que não? - escritores! Viva a cigarra!!!
Fantástico! Uma bofetada no egoísmo! E desde quando alegria é crime? Cada um faz o que sabe. E assim todos cabemos neste mundo. Parabéns!
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