Ultimamente, é este tremor na
mão esquerda que não a deixa escrever como antes. Coisa ainda leve, mas
incomoda-a, e a letra sai tremida, torta, sem semelhança com a letra alongada
que é a sua, a que trouxe da primária. Mas hoje, Maria da Piedade quer escrever
a carta que tem em atraso para a amiga Margarida.
Entra no quarto a tia Eunice.
Maria da Piedade reconhece-lhe os passinhos miúdos, e volta-se na cadeira. Não roda
o corpo. Quase não mexe uma fibra do pijama que ainda tem vestido, e nem do robe,
tudo em flanela, azul muito escuro. Vira apenas a cabeça num jeito de inquirir
quem entra, mas cala-se, ou melhor dizendo, fica-lhe nos olhos uma fala muda:
que queres a esta hora, tia Eunice? a tia deixando a porta do quarto entreaberta
na medida justa de ter passado nela o seu corpo muito magro. O corpo que quase
se alonga de modo a ficar depressa junto da sobrinha. Uns poucos de passos, e
ainda assim são meia duzia os que precisa, que a tia Eunice os dá pequeninos
enquanto vai dizendo num tom de voz baixo e levemente nasalado:
– O carteiro trouxe esta
carta, mesmo agora!
E estende o envelope que trazia
num bolso disfarçado na costura lateral da saia.
Com um estilete que retira do
copinho de loiça que tem sobre a mesa, Maria da Piedade corta rente o envelope.
Corta mesmo sobre o local onde terá lambido quem remeteu a carta: a humidade da
língua a dar à cola do debrum o poder de ficar fechado, até que o abra o
destinatário, ou outro a seu mando, como é o caso. Apenas um golpe, e seria
rápido, não fosse aquele tremor na mão esquerda que Maria da Piedade não
domina.
E a tia Eunice a olhar-lhe o
gesto. A tia a acompanhar o percurso do metal correndo no papel, e depois os
dois dedos da sobrinha a retirarem a folha: papel de seda coberto de dizeres.
A tia Eunice, com a
respiração suspensa, debruça-se apenas um imperceptível ângulo sobre o ombro de
Maria da Piedade.
Defronte, no parapeito da
janela, a espreitar na nesga que está aberta sobre a rua, poisa um pássaro. Um
pardalito à toa, enquanto tia e sobrinha estão suspensas da carta que enviou o
Carlos, amanuense em Elvas. Sabem disso as duas, que o exterior do envelope não
deixa dúvidas: remete Carlos Diamantino Silva Cruzes, Sítio do Forte, Elvas. E a
tia, se não sabe juntar duas letras, reconhece muito bem aquela caligrafia.
Maria da Piedade segura a
carta com a mão direita. Firme, sem a tremura da outra mão, que assim até a esquece.
E ainda a passar os olhos numa
leitura silenciosa, anuncia:
– Tia Eunice, o Carlos vem amanhã no combóio das
quatro.
O sol dessa manhã de Fevereiro
entra pela janela. Bate em cheio no cabelo que Maria da Piedade tem ainda em desalinho.
E a tia Eunice a querer saber mais do que possa estar escrito:
– Ele não diz se está
curado? não diz nada da febre?!
E é só então que Maria da
Piedade se vira na cadeira, empurra-a até um pouquinho para retirar as pernas
debaixo da mesa. Maria da Piedade de pé,
muito esbelta apesar de ser notório que de há muito passou a juventude. Sinal
disso, aquela multidão de pequeninas rugas que lhe saltitam pelo rosto. As duas, que tem aos cantos dos lábios, aparecem sempre que sorri, como agora, que
empurra a cadeira e diz à tia:
– Senhora, o seu filho diz
aqui na carta que a febre passou de um dia ao outro, esteja descansada.
E propõe-lhe sorrindo, a dirgir-se
para a porta do quarto:
– Vá mas é pensando no que
fazer para a ceia, quando ele chegar.
Maria da Piedade a acompanhar
os passinhos da tia, acrescenta amistosa:
– Podia pedir à Lurdes que
matasse um pato: fazíamos um arroz. Que acha?
A Lurdes é a mulher que
trabalha lá em casa: arrumos e limpezas grandes. É ela que encera e caia,
quando é necessário.
Chegada ao corredor que a
levará ao resto da casa, a tia Eunice nem se volta, ela que já recebeu notícias
do filho.
– Logo mais, logo mais – vai
dizendo, a afastar-se.
E Maria da Piedade retorna
para o quarto.
Volta a sentar-se em frente
da folha de papel ainda em branco. Alisa-a
com a mão que lhe treme. A sua mão esquerda. Aquela com que escreve e com que come,
que a tia Eunice, que a criou desde o berço, foi falar com a professora: que
não corrigisse a sobrinha, que deixasse a menina escrever como melhor lhe dava.
Foi na primeira classe, e seguiu assim de ali em diante: sempre a mão canhota a
impor-se à outra.
Maria da Piedade pega com
essa mão a caneta de tinta permanente: um prémio que ganhou no liceu por ter
sido a melhor aluna. Era quase sempre: ou ela, ou o primo Carlos.
Maria da Piedade começa a
escrever: querida amiga. Mas a mão treme-lhe. Poisa a caneta e sacode aquela
mão desobediente. Sacoleja-a como se a tivesse atacada de dormência. E não é. Maria
da Piedade sabe. O doutor disse-lhe: os medicamentos acalmam os sintomas, mas
não curam.
Maria da Piedade irá tentar,
até que tenha escrito a folha inteira, e mais do outro lado: uma carta enorme
para aquela amiga.
E quando acaba, relê,
palavra atrás de palavra.
Está nisso, quando repara que o sol já não lhe bate nos cabelos. Será
já o meio-dia e ela ainda em roupa de cama. Levanta-se para ver no relógio. Deixa na mesa
a carta escrita em papel muito fino. O papel repleto de palavras de um lado e do
outro, ali à mercê do golpe de vento que se dá, inusitado. Um golpe que deixa escancarada
a janela e afugenta o pássaro.
E no chão do quarto fica, estatelada,
a carta escrita por Maria da Piedade à amiga Margarida.
Uma mancha de palavras cor
de céu no chão de soalho. E Maria da Piedade aflita a tentar apanhar aquele
conto.
Que as letras não se soltem,
que não vão revoando pelo espaço que fica para lá do quarto. Que não dêem em desarvorar
pelo corredor. Que elas, assim juntinhas em palavras, não invadam, com seus
contos segredados, o resto da casa.
Maria da Piedade a tentar
que as palavras não vão voando pela janela fora com os contos feitos à sua
amiga Margarida, para serem lidos só por ela. Que as palavras não vão por aí troando:
sabes Margarida, o Carlos chega amanhã ao fim da tarde; e sabes? eu ainda o
espero como o fazia antes, lembras-te? como quando andávamos no liceu e ele me
disse: se não fosse teu primo, pedia-te em casamento; eu ainda o espero, e eu
ainda sou apaixonada dele; vamos fazer arroz de pato, Margarida, sabes? e eu
vou comer à mesa com ele e sentir-lhe o quente do corpo por baixo da toalha;
sabes Margarida?
Que Maria da Piedade escreveu
isso e escreveu muito mais. Encheu duas folhas com letra miudinha, tanto quanto
lhe foi permitido pela mão que lhe treme. Letras que, assim escritas, soltas
por aí, desvendariam segredos tão calados.
Que as palavras não voem.
E Maria da Piedade sem conseguir
prender com dois dedos aquela carta. A mão esquerda a desobedecer-lhe, e Maria
da Piedade com a mão direita inerte, essa mão que ela desabituou de tomar a
iniciativa.
E de repente, o pássaro,
voando, entra pelo quarto
O pássaro que teria ficado
ali por perto, volteou um pouco junto ao tecto, e desceu rente ao soalho. E assim
fazendo, pegou a carta com o bico. E no mesmo instante em que se ergueu para
tornar voando, deixou que caissem pelo chão todas as letras. Um fiozinho de
nada a despegar-se do papel de seda. Uma correnteza de alfabeto a cair por ali
abaixo. As letras de todas as palavras a desirmanarem-se, desfeitos ditongos e
sílabas, e as letras a formarem um montinho em cima do soalho.
Com a mão esquerda num
tremor desesperado, e ainda assim, Maria da Piedade apanha-as.
E uma a uma, empurrando-as
de leve, segurando-as frente ao bico da caneta como se fosse pássaro a
alimentar o filho, Maria da Piedade faz com que as letras retornem à caneta de
tinta permanente de onde nunca as deveria ter solto em contos de segredos.
2 comentários:
Você não me surpreende mais pela força da sua escrita, mas por que, a cada vez, ainda tem coisas a dizer que me encantam o espírito (o meu, já tão descrente de tanta coisa)... "correnteza de alfabeto a cair por ali abaixo". Esses e outros momentos é que enchem os meus olhos. Parabéns! Eu adorei! Ah, e antes que eu me esqueça: essa sua mão jamais tremerá! Bjs
Uma maravilha, Fátima! Lufada de ar fresco este segredo, contado com magia e ternura.
Ainda bem que a revista voltou a ser publicada!
Lá vou eu comentar como anónima até resolver a questão...
Mena
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