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quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Carlos, amanuense em Elvas, seu primo





Ultimamente, é este tremor na mão esquerda que não a deixa escrever como antes. Coisa ainda leve, mas incomoda-a, e a letra sai tremida, torta, sem semelhança com a letra alongada que é a sua, a que trouxe da primária. Mas hoje, Maria da Piedade quer escrever a carta que tem em atraso para a amiga Margarida.
Entra no quarto a tia Eunice. Maria da Piedade reconhece-lhe os passinhos miúdos, e volta-se na cadeira. Não roda o corpo. Quase não mexe uma fibra do pijama que ainda tem vestido, e nem do robe, tudo em flanela, azul muito escuro. Vira apenas a cabeça num jeito de inquirir quem entra, mas cala-se, ou melhor dizendo, fica-lhe nos olhos uma fala muda: que queres a esta hora, tia Eunice? a tia deixando a porta do quarto entreaberta na medida justa de ter passado nela o seu corpo muito magro. O corpo que quase se alonga de modo a ficar depressa junto da sobrinha. Uns poucos de passos, e ainda assim são meia duzia os que precisa, que a tia Eunice os dá pequeninos enquanto vai dizendo num tom de voz baixo e levemente nasalado:
– O carteiro trouxe esta carta, mesmo agora!
E estende o envelope que trazia num bolso disfarçado na costura lateral da saia.
Com um estilete que retira do copinho de loiça que tem sobre a mesa, Maria da Piedade corta rente o envelope. Corta mesmo sobre o local onde terá lambido quem remeteu a carta: a humidade da língua a dar à cola do debrum o poder de ficar fechado, até que o abra o destinatário, ou outro a seu mando, como é o caso. Apenas um golpe, e seria rápido, não fosse aquele tremor na mão esquerda que Maria da Piedade não domina.
E a tia Eunice a olhar-lhe o gesto. A tia a acompanhar o percurso do metal correndo no papel, e depois os dois dedos da sobrinha a retirarem a folha: papel de seda coberto de dizeres.
A tia Eunice, com a respiração suspensa, debruça-se apenas um imperceptível ângulo sobre o ombro de Maria da Piedade.
Defronte, no parapeito da janela, a espreitar na nesga que está aberta sobre a rua, poisa um pássaro. Um pardalito à toa, enquanto tia e sobrinha estão suspensas da carta que enviou o Carlos, amanuense em Elvas. Sabem disso as duas, que o exterior do envelope não deixa dúvidas: remete Carlos Diamantino Silva Cruzes, Sítio do Forte, Elvas. E a tia, se não sabe juntar duas letras, reconhece muito bem aquela caligrafia.
Maria da Piedade segura a carta com a mão direita. Firme, sem a tremura da outra mão, que assim  até a esquece.
E ainda a passar os olhos numa leitura silenciosa, anuncia:
–  Tia Eunice, o Carlos vem amanhã no combóio das quatro.
O sol dessa manhã de Fevereiro entra pela janela. Bate em cheio no cabelo que Maria da Piedade tem ainda em desalinho. E a tia Eunice a querer saber mais do que possa estar escrito:
– Ele não diz se está curado? não diz nada da febre?!
E é só então que Maria da Piedade se vira na cadeira, empurra-a até um pouquinho para retirar as pernas debaixo da mesa.  Maria da Piedade de pé, muito esbelta apesar de ser notório que de há muito passou a juventude. Sinal disso, aquela multidão de pequeninas rugas que lhe saltitam pelo rosto. As duas, que tem aos cantos dos lábios, aparecem sempre que sorri, como agora, que empurra a cadeira e diz à tia:
– Senhora, o seu filho diz aqui na carta que a febre passou de um dia ao outro, esteja descansada.
E propõe-lhe sorrindo, a dirgir-se para a porta do quarto:
– Vá mas é pensando no que fazer para a ceia, quando ele chegar.
Maria da Piedade a acompanhar os passinhos da tia, acrescenta amistosa:
– Podia pedir à Lurdes que matasse um pato: fazíamos um arroz. Que acha?
A Lurdes é a mulher que trabalha lá em casa: arrumos e limpezas grandes. É ela que encera e caia, quando é necessário.
Chegada ao corredor que a levará ao resto da casa, a tia Eunice nem se volta, ela que já recebeu notícias do filho.  
– Logo mais, logo mais – vai dizendo, a afastar-se.
E Maria da Piedade retorna para o quarto.
Volta a sentar-se em frente da folha de papel ainda em branco.  Alisa-a com a mão que lhe treme. A sua mão esquerda. Aquela com que escreve e com que come, que a tia Eunice, que a criou desde o berço, foi falar com a professora: que não corrigisse a sobrinha, que deixasse a menina escrever como melhor lhe dava. Foi na primeira classe, e seguiu assim de ali em diante: sempre a mão canhota a impor-se à outra.
Maria da Piedade pega com essa mão a caneta de tinta permanente: um prémio que ganhou no liceu por ter sido a melhor aluna. Era quase sempre: ou ela, ou o primo Carlos.
Maria da Piedade começa a escrever: querida amiga. Mas a mão treme-lhe. Poisa a caneta e sacode aquela mão desobediente. Sacoleja-a como se a tivesse atacada de dormência. E não é. Maria da Piedade sabe. O doutor disse-lhe: os medicamentos acalmam os sintomas, mas não curam.
Maria da Piedade irá tentar, até que tenha escrito a folha inteira, e mais do outro lado: uma carta enorme para aquela amiga.
E quando acaba, relê, palavra atrás de palavra.
Está nisso, quando  repara que o sol já não lhe bate nos cabelos. Será já o meio-dia e ela ainda em roupa de cama.  Levanta-se para ver no relógio. Deixa na mesa a carta escrita em papel muito fino. O papel repleto de palavras de um lado e do outro, ali à mercê do golpe de vento que se dá, inusitado. Um golpe que deixa escancarada a janela e afugenta o pássaro.  
E no chão do quarto fica, estatelada, a carta escrita por Maria da Piedade à amiga Margarida.
Uma mancha de palavras cor de céu no chão de soalho. E Maria da Piedade aflita a tentar apanhar aquele conto.
Que as letras não se soltem, que não vão revoando pelo espaço que fica para lá do quarto. Que não dêem em desarvorar pelo corredor. Que elas, assim juntinhas em palavras, não invadam, com seus contos segredados, o resto da casa.
Maria da Piedade a tentar que as palavras não vão voando pela janela fora com os contos feitos à sua amiga Margarida, para serem lidos só por ela. Que as palavras não vão por aí troando: sabes Margarida, o Carlos chega amanhã ao fim da tarde; e sabes? eu ainda o espero como o fazia antes, lembras-te? como quando andávamos no liceu e ele me disse: se não fosse teu primo, pedia-te em casamento; eu ainda o espero, e eu ainda sou apaixonada dele; vamos fazer arroz de pato, Margarida, sabes? e eu vou comer à mesa com ele e sentir-lhe o quente do corpo por baixo da toalha; sabes Margarida?
Que Maria da Piedade escreveu isso e escreveu muito mais. Encheu duas folhas com letra miudinha, tanto quanto lhe foi permitido pela mão que lhe treme. Letras que, assim escritas, soltas por aí, desvendariam segredos tão calados.
Que as palavras não voem.
E Maria da Piedade sem conseguir prender com dois dedos aquela carta. A mão esquerda a desobedecer-lhe, e Maria da Piedade com a mão direita inerte, essa mão que ela desabituou de tomar a iniciativa.
E de repente, o pássaro, voando, entra pelo quarto
O pássaro que teria ficado ali por perto, volteou um pouco junto ao tecto, e desceu rente ao soalho. E assim fazendo, pegou a carta com o bico. E no mesmo instante em que se ergueu para tornar voando, deixou que caissem pelo chão todas as letras. Um fiozinho de nada a despegar-se do papel de seda. Uma correnteza de alfabeto a cair por ali abaixo. As letras de todas as palavras a desirmanarem-se, desfeitos ditongos e sílabas, e as letras a formarem um montinho em cima do soalho.
Com a mão esquerda num tremor desesperado, e ainda assim, Maria da Piedade apanha-as.
E uma a uma, empurrando-as de leve, segurando-as frente ao bico da caneta como se fosse pássaro a alimentar o filho, Maria da Piedade faz com que as letras retornem à caneta de tinta permanente de onde nunca as deveria ter solto em contos de segredos.

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2 comentários:

Você não me surpreende mais pela força da sua escrita, mas por que, a cada vez, ainda tem coisas a dizer que me encantam o espírito (o meu, já tão descrente de tanta coisa)... "correnteza de alfabeto a cair por ali abaixo". Esses e outros momentos é que enchem os meus olhos. Parabéns! Eu adorei! Ah, e antes que eu me esqueça: essa sua mão jamais tremerá! Bjs

Uma maravilha, Fátima! Lufada de ar fresco este segredo, contado com magia e ternura.
Ainda bem que a revista voltou a ser publicada!
Lá vou eu comentar como anónima até resolver a questão...
Mena

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