Joaquim Bispo
A inspiração é uma fulguração intelectual produtora de estruturas representativas novas. Às vezes chamada intuição, criatividade, imaginação, era, nos tempos de Sócrates, tida como tendo origem em entidades sobrenaturais: musas. A entidade sobrenatural “sopraria” ao autor as ideias e as formas que ele procurava.
Este tema interessou e preocupou os artistas de todos os tempos, mantendo-se contemporâneas as questões da origem e do funcionamento da inspiração. É muito diferente, nas suas implicações, aceitar que ela resulta de uma intervenção externa ao artista – o que o desresponsabiliza e o menoriza – ou que ela resulta de uma elaboração subtil dos níveis mais elevados do intelecto.
As teses modernas apontam para esta última origem. Ao modo de conhecimento próprio da percepção, junta-se o modo da intuição, como «um sair-de-si e um captar, uma busca de conteúdos significativos.» «Ambas, intuição e percepção, são modos de conhecimento, vias de buscar certas ordenações e certos significados». Os dados do conhecimento são conformados e ordenados previamente para poderem constituir imagens referenciais e normativas. As novas estruturas resultam da reelaboração dos materiais de tudo o que o homem sabe e imagina – conhecimentos, conjecturas, propostas, dúvidas – materiais continuamente avaliados e comparados com imagens referenciais. Operações de relacionamento, diferenciação, nivelamento ajudam a fazer escolhas, construir alternativas e formular conclusões, sempre visando algum tipo de ordem. «A fantasia do bom artista ou pensador produz continuamente coisas boas, medíocres e más, mas o seu critério, extremamente aguçado e exercitado, rejeita, selecciona, associa».
As conclusões são muitas vezes inesperadas e surpreendentes, porque, como reelaborações, podem parecer novidades absolutas, mas, tendo sido baseadas em materiais existentes, formulam visões de certo modo pressentidas. É mais correcto falar-se de re-conhecimento, um reconhecimento imediato.
Esta teorização não evita a declaração surpreendente de que «até agora os processos intuitivos mostraram-se inabordáveis por investigações racionais e fogem mesmo à auto-análise. Surgindo de modo espontâneo das profundezas do ser, não é possível explicar o como e o porquê do caminho». No entanto, sabemos que o processo se apoia nos materiais existentes, pelo que pesquisar, meditar, andar à volta do assunto, recolher informação, trabalhar, em suma, são os cântaros que descem aos mananciais da criação. «A improvisação artística fica muito abaixo em relação ao pensamento estético sério e trabalhosamente seleccionado». Um Giacometti, um Saramago labutam longamente na luta com a peça, com o texto, para lhes extrair a forma e o sentido que procuram, sendo ambos apenas revelados e reconhecidos no trajecto calcorreado.
Bibliografia:
NIETZSCHE, Friedrich, “Da Alma dos Artistas e dos Escritores” in «Humano, Demasiado Humano», Lisboa, Relógio d’Água Editores, Lda., 1997.
OSTROWER, Fayga, “Caminhos Intuitivos e Inspiração” in «Criatividade e Processos de Criação», Rio de Janeiro, Imago, 1977.
PLATÃO, Victor Jabouille (trad.), «Íon», Lisboa, Editorial Inquérito, Lda., 1988.
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