Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

domingo, 13 de junho de 2010

Bom dia, Carlinhos

José Guilherme Vereza

Café da manhã. Carlinhos já de gravata, olhos pregados no jornal.
Chega a mãe de bule na mão. Penhoar amassado, cabelo preso mal ajambrado,
cara de que madrugou para botar a mesa.

- Bom dia, filhinho.
- Bom dia.
- Eu disse bom dia, filhinho.
- Eu respondi: bom dia.
- Você fala pra dentro.
- E a senhora não ouve de fora.
Só ouve o que já está dentro.
- Você está irritado, meu filho?
- Não.
- Eu irritei você?
- Não. Claro, que não, mãe.
- Alguma notícia irritou você?
- Não, mãe. Já estou vacinado com as irritações do mundo…
- Foi essa Gabriela, então.
Ela irritou você. Você chegou tão tarde…
- Não, mãe. A Gabi não me irrita nunca. Muito pelo contrário.
É o meu bálsamo. Meu oásis. A flor que nasceu no brejo
onde minha vida se atolava… Gostou?
- Poesia não enche barriga, Carlinhos.
- Mãe, me deixa ler o jornal em paz.
- Você é tão inocente, meu filho.
Não sabe nada da vida… Carlinhos, está me ouvindo?
- Estou ouvindo uma voz ao longe,
voz de chapinha arranhando no ladrilho,
unha arrastando no quadro negro…só isso.
- Você não era assim.
- Assim como?
- Grosseiro e irritado.
- Mas eu não estou irritado.
- Desde que voltou para casa ficou desse jeito.
Foi recebido com tanto carinho, meu Deus…
- Provisoriamente, mãe. Eu avisei: pro-vi-sio-ra-men-te.
- Não sei por que largou a Belinha, moça tão boa, coitada…
- De novo, mãe: o casamento ficou chato, sem graça, acabou.
- Por que você não arrumou uma amante?
É isso que os homens fazem para manter o casamento.
Seu pai sempre foi assim. Você acha que eu não sabia?
Pois sim. Sabia de tudo e bico calado.
O importante é que ele nunca deixou faltar nada nessa casa.
- Eu não acredito que estou ouvindo isso.
- Você está irritado, meu filho.
- Não, não estou irritado.
- Por que está falando assim com irritação?
- Mas eu não estou irritado. Já disse.
- Está sim. Mãe sabe quando o filho está irritado.

Carlinhos tira os olhos do jornal, suspira,
levanta a cabeça e finge que conta as teias de aranha no teto.
Com toda calma, pega bule, xícara, pires, pratinho, manteigueira,
potinho de geléia, joga tudo contra a parede.

- Agora estou irritado, mãe. Satisfeita?

A mãe, calada, arruma um pano para limpar a sujeira.
E se abaixa, vitoriosa, para catar os cacos.

Share


José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20