Maristela Scheuer Deves
Depois que experimentei o gosto do sangue jorrando da garganta de um animal vivo, sucumbi inteiramente à minha sede. Durante o dia, eu conseguia me controlar, mas à noite escapava pela janela e vagava sem rumo, atacando os gatos e cachorros que incorriam no erro de atravessar o meu caminho. Deixava-os vivos, mas atordoados e exangues, e provavelmente não sobreviviam mais do que um dia ou dois.
A única barreira que eu ainda mantinha, por enquanto, era a de não atacar humanos. Eram meus iguais, pelo menos ainda em parte, e o horror me invadia a cada vez que eu pensava em cravar meus dentes no pescoço alvo de alguém. Esse horror, no entanto, era mesclado com um prazer antecipado, um arrepio de excitação, uma vontade crescente...
Minha mãe ainda me mantinha trancada no quarto, mas, é claro, assim como eu escapava pela janela para me alimentar dos animais eu também o podia fazer para chegar perto de outras pessoas. Uma noite, não resisti, e entrei pela porta da frente de casa. Parei na porta do quarto de meus pais, depois de meus irmãos, mas me obriguei a ir adiante. Quando vi uma réstia de luz vindo por baixo da porta do quarto de visitas, porém, não me contive, e empurrei-a devagarinho.
Sentada na cama, minha avó me observava. Notei seu choque ao ver o quanto eu estava pálida e transfigurada, mas ela manteve a calma e o sorriso sereno.
— Eu sei pelo que você está passando, minha filha — declarou ela, sem alterar o tom de sua voz sempre doce. — Aqui na cidade, todos iriam rir de mim, mas já vi isso acontecer antes, no interior, quando eu era menina.
Ela ficou com o olhar distante, perdida em pensamentos, e eu vi a mim mesma se aproximando passo a passo do seu corpo frágil e indefeso. Eu não queria, eu juro, mas era mais forte do que eu. Minha sede crescia, e eu sabia que o gosto de sangue humano seria mil vezes melhor do que o de um animal...
Eu já estava com a boca a centímetros de seu pescoço quando senti meu rosto queimar. Na sua aparente ingenuidade, minha avó recorrera ao mais básico dos truques para se livrar daquilo que eu estava me tornando: atirara água benta em meu rosto, e agora erguia na mão um punhado de cabeças de alho.
Recuei, apavorada, mas ela conseguiu de alguma forma ser mais rápida. Agarrou-me e, com o alho e a água benta, me fez sair novamente de casa e ir até a garagem. Depois, obrigou-me a dirigir horas e horas, até o lugar em que me encontro agora: o porão úmido e fétido de uma antiga casa de campo.
Não posso sair, pois há alho plantado ao redor de toda a casa. A cada dia, ela me traz água e um bife, a cada dia um pouco mais passado. Vem protegida por um colar de alhos, e diz que vai me curar do meu problema, que não pode deixar sua neta virar uma vampira. Por vezes, penso que já me tranformei; noutras, que estou tendo um pesadelo, um longo e maluco pesadelo. Mas, no fundo, sei que é real. Sei que ainda falta um último ato na minha transformação, que é provar o sangue humano.
O que não sei é quem vencerá essa guerra: se minha sede ancestral ou o colar de alhos da minha avó...
0 comentários:
Postar um comentário