Cirilo S. Lemos
A música é a única arte que toca de fato o coração das pessoas. O resto é papo furado.
(Escrevo isso no espelho do banheiro com aquele seu batom rosa.)
O violão já está largado num canto faz tempo, a caneta e o caderno cheio de frases rabiscadas caídos pelo chão, e você aí deitada, tão linda. O corpo moreno se esparrama pelos lençóis úmidos de amor e sangue, me convidando a beber mais de você. Mas não quero acordá-la. O dia foi tão puxado, teve aquela correria toda do seu trabalho, a casa que precisou ser arrumada mil vezes, a comida, a bagunça que não consegui evitar.
Por isso é melhor que eu fique aqui parado, observando-a agonizar com a pele arrepiada pelo frio, seguindo o desenho sinuoso do seu corpo com os olhos inundados por uma sensação quente que só posso descrever como – como o quê? Não sei como descrever isso. Para falar a verdade, não sei como descrever mais nada nesse mundo. Também não sei mais o que pensar depois de tanta confusão que houve mais cedo. Você mesmo falou que não se importa com o que acontece ao meu coração. Isso eu posso aceitar. Jogar na minha cara que não tenho emprego, que vivo às suas custas, que sou um sonhador inveterado, essas coisas eu até posso agüentar. Mas dizer que não sou capaz de escrever uma letra decente é demais. Deus me fez para a música, querida.
Olhou-me com desprezo, desafiando-me a escrever uma canção sobre sua nudez, não devia ter feito isso. A caneta parecia pesar toneladas, a folha pautada em branco escondendo o diabo do bloqueio, os acordes que não se acertavam e você debochando, rindo de mim, testando meus limites. Não devia ter feito isso, eu sou um astro da música ainda não descoberto, e nós artistas de verdade temos almas sensíveis e passionais, agimos por impulso. Sem pensar, fui em sua direção, beijei-a, deitei-a sobre nossa cama e, enquanto a penetrava, espetei seu peito com uma faca. Então veio a inspiração, jorrando em torrentes caudalosas.
Com a caneta de volta entre os dedos, arrisco as primeiras frases.
Deixa/nossa casa é tão perto / e o meu futuro é incerto / mas ainda arrisco o meu pescoço só para poder te ver / enquanto você nem ao menos olha nos meus olhos / e sorrindo, diz para todo mundo / que eu não sei viver sozinho / justo eu, que sou um cara interessado / mas não estou nem aí / depois do que passei / decidi que não é tão legal ser assim / um conselho: veja o que vai de encontro ao seu orgulho / você não me entende, é o que diz / nem quero entender.
Fico de pé, o ruído gorgolejante saindo da sua boca me dá uma ótima idéia para um pequeno solo. Apanho o violão e o dedilho suavemente, cantando para você:
Agora sei que faço parte de algo que importa / quando a única coisa verdadeira é a dor que sinto por você / se pode abrir a porta, abra, não me deixe aqui / sei que posso reagir, mas é bem mais fácil assim / não fui eu quem perdeu o compasso / nem sou o cachorro que mandaram para o espaço.
O que é que eu sou?
Não pode duvidar / que a minha alma já me perdoou / sou um porco, mas ao menos sou honesto / gosto de presunto, mas não sou canibal / o que me importa se não pode mais correr? / aqui não pode mais ficar se minha alma já me abandonou / somos dois refugos deste mundo.
(O seu cabelo está tão lindo).
O seu câncer é tão sereno / aqui se faz, aqui se paga, são as regras, pode ver. (Não está ficando bom, estou perdendo a inspiração).
A faca está brilhando tanto, quase como se chorasse. Deve estar com sede, meu bem. Será que ela gostaria de mais um pouco de sangue? Sangue seu? Estou pensando seriamente nisso, mas tenho medo de machucar você, sabe. Eu te amo e não quero que doa.
Ah, mas eu não contei? Sábado passado uma nuvem me arrastou / fui levado para o Himalaia e só voltou o que restou / foram meus ossos e uma perna quebrada.
(Noite passada tive um pesadelo: atrás de cada porta tinha vinte espelhos e todos refletiam sobre mim).
A lâmina da faca é tão fria, não é?
Agora que sei dos amigos que tenho / fica bem mais fácil alcançar o pé de vento.
Carne macia a faca corta que é uma beleza, assim pouco acima da coxa. Não vou negar que a quantidade de sangue que brota me assusta. Nesse ponto eu sou um pouco sensível, mas você entende, não entende?
Se o meu veneno te atrai / o seu atrai a mim também / o sangue arterial não sufocou meu medo.
(Está pingando sangue no tapete).
Olhando pela janela percebo que o dia passou e eu nem vi. Agora se aquieta, é verdade, eu não menti. É sempre a mesma história, “o que há com você? Sua caixa de sapato não contém mais o mundo, onde você vai viver?”
Sim, querida, estou doente e venho de outra dimensão, onde o ódio acaba com as ilusões de que esse planeta ainda vai mudar. Não existe nenhum coração cósmico de bondade para nos amar por aí. Tenho certeza que aquela farsa do remédio não funcionou. O grande vazio ainda está aqui. Quem eu amo está contra mim, todo mundo querendo me encher de remédios, até você, dizendo que era para o meu bem. Mas sou um artista, artista não precisa de remédio.
Todo dia os meus olhos / encherão de água ao me lembrar de você. O ontem e o amanhã / convergindo para se tornar hoje. Legal isso, não é? Eu sei que é. Tenho muito orgulho de pensar essas coisas sozinho porque sou um poeta. Um poeta da dor. E não somos todos?
Seus olhos estão meio vítreos, será que é normal? O corte não foi tão fundo assim, não chegou nem a sair um litro de sangue. Mas esses olhos tão perdidos, tão fixos, não sei não. São olhos que fazem sorrir / e que fazem chorar. Suas preces não funcionaram desta vez, querida. Vou tirar da gaveta o meu disco de blues / enquanto o que sobra de nós dois rodopia em meio ao pus (ei, isso meio que rimou, eu não gosto de rimas, prefiro versos brancos). As coisas estão tão confusas agora aqui na minha cabeça. Eu matei você ou você já estava morta quando eu cheguei? Tanto faz. Estou sempre gravitando em volta do desastre, de qualquer forma. Não seria eu se não fosse assim.
(O dia está terrível. Não, terrível está o ano).
De terno e gravata, estou pronto para morrer. Isso que vê em mim não nasceu aqui, mas vem de você. Dessas suas tentativas desesperadas de vender o chão para comprar o céu. Ninguém notou a sua dor e isso te incomoda. A vida não é justa, mas quem se importa?
Apesar de tudo, não é tão ruim assim / o seu coração tem beleza.
Misturei os antidepressivos com mel para beber sem sentir o gosto.
Lembra, morena, quando você apareceu para mim? Na primeira vez que eu vi, não senti nada , mas quem me mandou insistir? Isso tudo é confusão / isso é confusão / estou confuso e não vai dar / nasci para você / embora eu não possa entender / como ocupar todo o espaço e o tempo perdido / você está presente aqui / rasgando minha alma / minha deusa fantasma / consumindo meus sonhos / abraçou-me com seu filtro / me abandonou no sol / fiquei tão perdido / buscando seu rosto na multidão. Reencontrei minha dor / reencontrei minha luz / reencontrei minha deusa fantasma / trazendo para mim minha cruz (nada de rimas, versos brancos, versos brancos).
Seu corpo está gelado, querida. Acho que você está mesmo morta. Você me diria se estivesse morta?Vou enrolar você nesse lençol com cuidado para os vizinhos não acordarem, então te arrasto para o jardim. Você gosta tanto de plantas que acho que ficaria satisfeita em ser enterrada no meio das flores, estou certo ou não? Hein? Fale alguma coisa, querida, está me assustando com esse silêncio. Seu riso impertinente me consumia, abria meu peito, me fazia em pedaços, onde é que ele está agora? Não fui eu que planejei, só aconteceu. Inocência, direi ao senhor delegado, já foi uma virtude. Hoje eu não sei mais o que é. Agulhas não me trazem juventude, estou acorrentado. Com tantos crimes que eu cometi, quem vai me perdoar?
Vou ter de encarar aquele abismo que fica me olhando tentando me assustar. Eu nunca, nunca mesmo, estive tão seguro assim como hoje. Estou tão feliz. Eu vou saber o que você pensou, vou te fazer falar. São tantas as coisas que sonhei, talvez eu realize algumas delas. Mudar talvez não seja tão ruim.
(Eu não tenho vontade própria, só uma bateria anti-social).
Haverá estradas para perdidos como eu? Vou chorar lágrimas de sangue para você saber que meu amor é sincero, enquanto a terra te absorve. Para te salvar sou eu quem tenho de morrer, e se eu morrer vão me esquecer, não quero isso para mim. O que eu quero é dor indolor para sentir sem mentir, e viajar sem sair do lugar. Quero livros escritos por mim / e queimados por mim / me deixa queimar.
Tive outra visão enquanto vomitava no banheiro e lavava seu sangue do meu rosto: a lua estava sobre mim e me compreendeu, enquanto as árvores mais altas imploravam por atenção. O temporal por um segundo esteve para voltar, mas o vento o afastou para bem longe daqui (ah, se eu soubesse o quanto estava equivocado ao pensar isso!). Pode voltar, pode retornar, mas espero que me deixe aqui. Esse é o final – se for, mas que triste o fim.
Sua cova está pronta, querida, preparei-a da melhor maneira levando em conta a falta de ferramentas apropriadas. Quando tudo mudou entre nós, precisei me erguer para superar. Eu te vejo ao voltar da prisão, mas agora não posso ver mais nada. Nem quero sentir seu coração. Todos os meus gritos mostram todo o meu desejo de te ver aqui. Enquanto o tempo passa sua mortalha improvisada me aquece e me faz pensar se é possível para mim encontrar o céu (é o mesmo que o inferno, pode ser frio e congelado). Passarei dormindo um dia infinito para descansar.
Enquanto jogo os primeiros bocados de terra sobre seu túmulo carinhosamente improvisado, evito sujar seus olhos tão belos e amendoados. No fim, só levamos a música que ouvimos.
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