Cirilo S. Lemos
Cícero entra em casa. Na mão treme um protocolo. No rosto, um sorriso que traz ao mesmo tempo felicidade e expectativa. A respiração está pesada, os músculos estão tensos. Desobedecera às ordens da mãe e se inscrevera no concurso da polícia.
Ainda podia ouvir os destemperos dela reverberando pela casa de cômodos pequenos e desbotados: você não vai e acabou. Não quero perder você presses doidos que andam pela rua. É assim mesmo que ela diz, o sotaque pernambucano dançando na boca, contraindo o para com o esses. Presses. Quase preces.
O que queria mesmo era abraçá-la, deslizar a mão por entre seus cabelos finos, agora cinzentos pela idade, e tranqüilizá-la: não tem problema não, mãe. Vou ser um bom policial, honesto, não vou me meter com coisa errada. Seria bom se ela o olhasse com aqueles olhos cheios de calor e o abençoasse. Tudo seria mais fácil.
Por outro lado, ela poderia ficar furiosa, esbravejar, crescer até ficar do tamanho da casa, mil trovões explodindo ao seu redor, enquanto lhe apontava um dedo do tamanho do dedo do Senhor do Velho Testamento: seu cachorro, seu puto. Pode ir tirando o cavalinho da chuva se acha que vou deixar você fazer essa prova. Você só entra pra polícia por cima do meu cadáver.
A mãe, que continua sentada no sofá, olho no feijão que cata para o jantar, ouvido atento à novela, agora ergue a cabeça. Olha devagar para a porta, dá de cara com Cícero parado com o semblante perdido.
"Que papel é esse?", ela pergunta. Cícero imagina mil respostas, mil explicações, vem na mente a imagem dela se agigantando feito uma górgona terrível, recebendo a notícia como quem recebe um balaço no peito e caindo no chão de cimento.
Não era má pessoa, a mãe. Até compreende o medo que ela sentiu quando ele, bebendo café com leite antes de ir para a obra onde trabalhava como servente, lhe contara da vontade de fazer o concurso da polícia. Era seu único filho, e perdê-lo significava também perder-se.
"Tá besta, menino? Que papel é esse?", ela repete.
"É o nosso futuro, mãe."
"Futuro com você deitado dentro de um caixão eu não quero."
"Bate nessa boca, mãe. Não vai acontecer nada disso."
A mãe levanta do sofá, a bacia de feijão vai ao chão. Cícero espera que ela cresça, cuspa seus perdigotos elétricos, desate a matraquear esquecendo-se da força que faz para abrandar o sotaque. Mas a mãe não faz nada disso: apenas lhe dá as costas e começa a recolher o feijão. A cabeça treme de leve. Está nervosa, ele sabe. Conhece bem a mãe que tem.
"Vai ter que andar carregando arma", ela diz.
"Só vou usar para me defender", Cícero responde.
"E se precisar matar alguém, logo você que não agüenta nem ver cachorro morto na rua?"
"Não vou virar bandido, mãe. Não vou machucar ninguém à toa."
"Polícia bonzinho só se fode, meu filho."
"Não vou virar bandido, mãe", repete Cícero.
Ela se retira para o quarto. Parece resignada, mas Cícero sabe o quanto ela está sofrendo. Pensa se não está sendo egoísta insistindo naquela história, matando a velha aos poucos. Não, a egoísta é ela. Tem o direito de decidir a própria vida. Sente de repente uma raiva comendo-o por dentro e entra no quarto, disposto a despejar sobre ela a lava incandescente que entope sua garganta. Encontra-a ajoelhada ao pé da cama, rezando com a foto de seu pai já falecido contra o peito, e a raiva desaparece.
"Vão matar você, meu filho, e ainda dar gargalhada."
O dia da prova. Cícero chega cedo ao local onde ela será realizada, com duas canetas pretas no bolso. Se tivesse mais dinheiro, teria levado umas dez, sempre acha que as canetas vão falhar na hora H. Está nervoso, roendo as unhas até ferir os dedos cheios de calos. O fiscal lhe entrega o caderno de questões e o cartão-resposta com um olhar indiferente. Cícero morde a tampa da caneta, a, b, d, c, c, a. Sessenta questões, uma redação e quatro horas que se arrastam enquanto os olhos latejam de cansaço. Quando termina, levanta-se da cadeira, o corpo pesando toneladas, e vai para o ponto de ônibus. Durante a viagem observa um mundo cinza, no qual a paisagem é que parece se mover, não o ônibus.
O resultado ele vê no jornal. Desliza o dedo pelas colunas de CPFs em busca do seu. Lá está o número, espremido entre outros tantos, sem significado para ninguém além de si. Não pode ser, ele pensa, uma euforia crescendo no pé da barriga. Olha de novo, finge que não acredita, confere e reconfere. É o seu número, é o seu número mesmo. Levanta-se da mesa, dá voltas pela cozinha, a mão na boca num gesto incrédulo de quem quer expelir uma explosão que é grande demais para ser contida. Vai até o fogão, esquenta o café. Seu número, é seu número mesmo. Lá de fora, enquanto varre a poeira e as folhas teimosas da calçada, a mãe pode ouvir sua gargalhada ruidosa irromper.
A convocação chega através de um telegrama. Exames de todos os tipos são feitos para atestar a sanidade física, mental e moral de Cícero. Ao vergar o uniforme com seu sobrenome e tipo sanguíneo, pensa no pai e no orgulho que ele sentiria. Automaticamente, o pensamento lhe puxa a imagem carrancuda da mãe.
Na aula de tiro, Cícero se mostra dedicado. Domina rapidamente as normas oficiais da corporação, e também aquelas não tão oficiais. Tenta ser gentil e educado com todos, embora isso às vezes lhe renda comentários debochados e risadas abafadas pelas costas que finge não ouvir.
Em casa, a mãe quase não fala nada. Limita-se a lhe servir a comida, o café e a lavar sua roupa. Cícero não gosta dessa situação, mas acha que a culpa não é sua. Se ela aceitasse suas escolhas, as coisas não precisavam chegar a esse ponto. Nos dias de folga, tranca-se no quarto e assiste à TV. Às vezes, vai até o bar do Arnaldo beber um refrigerante, rever os amigos, mas os amigos não são mais os mesmos desde que ele entrou para a polícia. Fazem brincadeiras, riem, mas algo soa falso. Cícero ri sem vontade, paga o refrigerante, mas Arnaldo se recusa a aceitar o dinheiro, dizendo que é um presente. Cícero agradece, lembrando de todas as ocasiões em que Arnaldo, abrindo o caderno de fiados, fez questão de receber até a última caixa de fósforos vendida.
"Vamos dar uma volta", diz o tenente Flores certa manhã. Cícero olha para a viatura, onde conversam outros dois policiais que nunca vira.
"Tenho que organizar uma papelada aí", ele desconversa. Flores não aceita a resposta quase inaudível.
"Vamos", ele repete, e o olhar duro que lança é praticamente uma sentença. Cícero entra no carro, no banco do carona. Os outros dois, Silva e Venâncio, viajam no banco de trás, conversando coisas que o movimento dos pensamentos de Cícero leva para longe de seus ouvidos. Apenas as gargalhadas ficam, mas Cícero sente nelas augúrios terríveis.
Em algum momento, quando a viatura dirigida por Flores penetra na rodovia, os homens começam a contar histórias sobre tiros acidentais que estouram a cabeça do carona, com detalhes minuciosos a respeito da massa encefálica sangrenta espalhada pelo pára-brisa trincado, e a expressão patética de surpresa no rosto esfacelado do cadáver. Cícero sente o estômago protestar.
"Olha ali, olha ali", avisa Silva, apontando para uma quadra esportiva de cimento à beira da via, onde um grupo de rapazes descansa após uma partida de futebol, tirando sarro uns dos outros, brincando e gargalhando. Flores diminui a velocidade e encosta a viatura.
"Fica aí todo mundo, ninguém sai não, porra", gritam os policiais, avançando depressa na direção deles, fuzis em punho. "Todo mundo com as mãos na parede agora, vai, vai". Os doze moleques obedecem, assustados. Sabem que os canas só querem uma desculpa. Venâncio e Silva começam a revista, enquanto Flores dá cobertura dez passos atrás. Cícero não está ali como ator naquela farsa: antes disso, sente-se um mero expectador incrédulo de um vídeo amador transmitido num telejornal qualquer. Quando Silva acerta o bico do fuzil nas costelas de um rapazote franzino de cabelos descoloridos, se dá conta do mar de lama no qual mergulhou de cabeça. Não pode protestar, não na frente de todo mundo para não desmoralizar os colegas, mas também não pode aceitar uma coisa daquelas. O jeito é desligar os ouvidos e transformar as imagens em filme em preto e branco; mas ao fazê-lo, o que ocupa seu lugar é a voz da mãe aplicando sermões com uma gargalhada histérica ao fundo.
"Cadê a parada?", está gritando Venâncio, enquanto Silva desfere tapas estalados no rosto de um rapaz de cabelos descoloridos, que chora enquanto o sangue escorre pelo do canto da boca. Flores faz um sinal para que os homens o arrastem para a traseira da viatura. Outro rapaz também é colocado ali. Os demais são dispensados e desaparecem depressa.
A viatura volta para a rodovia, e durante a conversa Cícero apenas ouve as gargalhadas. Piadas, brincadeiras, os lamentos dos rapazes lá atrás, o caos sonoro de buzinas, nada disso é mais que um lampejo longínquo.
Chegam a um terreno baldio cercado por um matagal alto, aos pés de um morro deserto. Flores manda os homens trazerem os moleques e os coloca perfilados, as mãos no alto da cabeça. Choram, enquanto os homens debocham e gritam coisas sobre morte, o que só piora as coisas. O segundo rapaz, a voz embolada pelas lágrimas, diz que é trabalhador, apanha, cai, é levantado pelos cabelos. Cícero percebe que está tremendo.
Flores acende um cigarro, manda os moleques correrem. Atônitos, eles não sabem se correm, se ficam, mas sabem que de qualquer forma a vão atirar. "Corre, caralho", grita Flores. Não tem jeito. Cícero observa o movimento dos ossos quase furando a pele quando os dois infelizes se viram para correr. Por um átimo, os olhos de um deles cruzam diretamente com os seus.
Flores dá dois tapinhas no ombro de Cícero: "atira nesses merdas".
Cícero se surpreende: "eu?"
"É, você. Atira logo."
"Mas eles estão de costas. E desarmados."
"Caralho, Flores, os putos vão sumir no matagal", avisa Venâncio.
"Atira, garoto."
"Eu não", responde Cícero, num tom a princípio hesitante. Aqueles dois rapazes tinham quase a sua idade, só estavam jogando bola com os amigos como ele mesmo costumava fazer quando não tinha nenhum bico à vista. Então pensa que tudo não passa de um teste para saber até que ponto pode ser levado, se é confiável para integrar o grupelho. Pode apertar o gatilho, metralhar os rapazes e ir um passo além, um verdadeiro batismo de fogo. Provaria para a mãe que poderia se adaptar e sobreviver naquela selva; mas assim mataria também algo dentro de si, algo irrecuperável, algo pelo qual ansiaria quando deitasse em sua cama à noite.
Ou também poderia - e essa possibilidade lhe parece naquele momento a mais saborosa - descarregar o fuzil no Flores, no Venâncio e no Silva e mandá-los para o inferno. As conseqüências que se fodam, ele ia ficar gargalhando. Mas tudo o que faz é negar com mais veemência quando Flores reitera a ordem. O tenente toma o fuzil de sua mão e faz mira. Quando os rapazes já ganham o matagal e sentem nascer outra vez um laivo de esperança, uma saraivada de balas os atinge e derruba , agonizantes, sobre uma poça de sangue.
"Seu filho da puta, se isso der galho tu tá ferrado", ameaça Flores, devolvendo a arma para Cícero.
"Você matou os moleques", diz Cícero.
"Não, você matou. Foi da tua arma que saiu a munição."
Que merda, pensa Cícero. Lembra das palavras da mãe: polícia bonzinho só se fode, meu filho. Já podia até ouvir suas gargalhadas quando dissesse para ela que não queria mais saber daquela carreira dos infernos.
2 comentários:
Holy shit!
Hollywood nunca faz um libelo acusatório contra a totalidade de uma instituição. Quando quer denunciar a irracionalidade sanguinária dos seus militares ou a corrupção das suas polícias, sempre entremeia a mensagem de que os problemas se restringem apenas a meia dúzia de maçãs podres ou, quando muito, a uma parte da instituição, mas que esta e a sociedade dispõem de mecanismos que se acionam e que acabam por isolar e castigar o mal, de modo que há sempre esperança para o injustiçado e para o cidadão em geral. Não sei se faz isto por razões patrióticas, se para evitar processos judiciais ou boicotes económicos.
Muito bom texto.
É mais ou menos por aí, mesmo.
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