por Leandro da Silva
liberdadeperiferia@riseup.net
Sobre a relação entre arqueologia do capitalismo, literatura e memória, sobretudo as fundamentações histórico-culturais para os direitos humanos concensuais do agora.
Ao se lembrar de fatos e personagens, totalmente esquecidos e que originaram percepções, temáticas e realidades, a sensação é estar à sós, como ficou o protagonista do assunto deste artigo.
Liberdade de expressão, descentralização da cultura e literatura livre, pautas que passam por através dos tempos, e que têm como referência o que se aconteceu nos anos stalinistas da União Soviética, e a luta propriamente clandestina. Em um Estado que tentava controlar a tudo e massificar ao máximo a cultura, as pessoas para satisfazer suas necessidades culturais tinham como instrumento o chamado Samizdat, uma auto-publicação em baixa tiragem e artesanal, passada de mãos-em-mãos. Seja uma publicação estritamente política, ou político-cultural, ou um simples poema. Assim os povos da União Soviética viam como uma das alternativas tal instrumento, que fez parte dos embates com a megaestrutura stalinista.
Um homem simples, um operário russo que passou por todos os processos político-sociais anteriores, durante, e após a Revolução Russa, se não é um dos principais agentes que fizeram possíveis um confronto com todo um Estado, e principalmente a fé de que é possível sempre expressar-se mesmo nas condições mais opressoras. Nem se tem uma “tradução” precisa de seu nome para o português, próximo à Archinov ou Arshinov, por inteiro: Piotr Andrievich Marin Archinov.
Poucas fontes para escrever um artigo sobre sua relação com a liberdade de expressão e produção literária. A maioria das fontes humanas foram “desaparecidas” ou assassinadas bem como as fontes bibliográficas foram queimadas ou “recicladas”. No entanto, pode-se dizer o que é oficial para o Estado Russo atual ou o que é reconhecido a partir dos pouquíssimos registros, um personagem histórico nascido numa aldeia russa, que ao entrar em contato com os primeiros grupos bolcheviques na categoria ferroviária, tornou-se militante, e após alguns confrontos com o sistema tzarista, ao sofrer a repressão teve contato com anarquistas, e assim abandonou o marxismo. Participou de várias greves e confrontos, organizou os anarquistas russos, virou uma referência, foi perseguido publicamente pelo Estado. Condenado à morte, fugiu da prisão, se exilou na França, depois retornou, continuou suas atividades, o Estado o capturou de novo, tudo isso nos primeiros anos do século XX. Preso, na capital russa, conheceu Nestor Makhno, outro anarquista, e lá ficou enclausurado até eclodir a Revolução de 1º de Março de 1917, e ser libertado junto à Makhno e os principais inimigos do Estado e sistema tzarista.
Retornou com Makhno para a terra dele, a Ucrânia, onde a Revolução também estava acontecendo, sobretudo no campo, onde Makhno era como a um herói dos povos camponeses. Dali, uniram as vilas e formaram um Exército Insurrecional próprio afinado ideologicamente com a ideologia anarquista porém, aberto a todos os camponeses que queriam lutar pelos direitos mais nobres, principalmente pela reforma agrária e autogestão. São reconhecidos os feitos do Exército Insurrecional Makhnovista, enfrentou os exércitos “brancos”, aliou-se com o Exército Vermelho dos bolcheviques e o salvou por várias vezes nas batalhas contra a burguesia e aristocracia locais e internacionais, no cenário pós-guerra mundial. Foi quando após conflitos com os bolcheviques, sobretudo na tentativa de criação da “ditadura do proletariado”, a partir da capital russa, Lenin e Trotsky considerou o exército que já os salvou uma ameaça. Em uma batalha considerada de traição, o Exército Vermelho massacrou pelos flancos o Exército Insurrecional Makhnovista, e assim foi eliminada uma grande oposição aos planos de centralização bolchevique, junto ao marinheiros de Kronstadtff, também inspirados pela corrente libertária ( anarquista ). Archinov, conta tudo isso e muito mais em seu livro “História da Makhnovischina”.
Sobreviventes por sorte e feridos, os poucos que conseguiram, se exilaram na França, Archinov, Makhno, entre outros. Juntos lançaram novas ideias para o anarquismo mundial após as experiências do anarquismo russo e ucraniano. Escreveram “Plataforma Insurrecional Anarquista” um documento que pede a todos militantes libertários do mundo a se organizarem melhor, pois o fracasso na Revolução Russa foi em parte reflexo da desunião entre anarquistas, que fizeram várias lutas isoladas que não puderam conter o golpe da “ditadura do proletariado”. O documento foi mal recepcionado, pois os anarquistas do mundo o interpretaram como uma ordem de organização “forçada” em que todos deveriam estar dentro para sobreviver, Errico Malatesta, foi um dos que rejeitaram as ideias de Makhno e Archinov.
Isolados e frustrados, os anos 20 passaram-se vendo da França o stalinismo frear as conquistas da revolução e eliminar a oposição socialista brutalmente na nova União Soviética.
Foi quando numa oportunidade, Archinov quis reverter toda sua frustração, pois na França ainda perseguiam os sobreviventes do Exército Insurrecional Makhnovista, aproveitou o fato de ser expulso da França, para gerar uma condição e dar realidade a um antigo plano: retornar para a Rússia.
Lançou panfletos que negam a importância do anarquismo, rejeitou a corrente libertária e defendeu o stalinismo, fazendo saudações à política da União Soviética do momento. Em consideração com a enorme importância de Archinov para a revolução e até mesmo para a formação dos primeiros anos do bolchevismo, anteriores a sua adesão ao anarquismo, Stalin “perdoou” Archinov e aceitou sua repatriação e filiação no Partido Comunista. Ferido e doente, Makhno ficou surpreso com a atitude de Archinov, e o considerou não só um traidor, mas alguém que renegou o que ele viveu, após ter feita a famosa “autocrítica soviética”.
De volta a sua terra natal, Archinov em pleno stalinismo, ocupou funções do Partido Comunista, e atuou como revisor em Moscou. Os anarquistas do mundo inteiro o consideraram como a decepção dos anos 30.
Pouco depois, durante a purga stalinista, em 1937, Archinov some. Ninguém sabe o que aconteceu, poucos se manifestam. Após alguns anos e depois com a queda do stalinismo, é revelado seu paradeiro e o registro do seu sumiço aparece: “Deportado por acusação de restaurar o anarquismo na Rússia Soviética”. Parece que ele foi filmado em 1937 na deportação. Mas, mal se sabe ao certo para onde foi e aonde foi enterrado.
Como assim?
Décadas após décadas, as gestões do Estado seja na antiga União Soviética quanto na nova Federação Russa, desde o tempo de Lenin e Trotsky, escondem os arquivos das atrocidades cometidas como crimes próprios de Estado. Uma gestão após outra, foi apagando tais arquivos, de acordo com o que era bom ou ruim para o regime. Assim foi com toda a produção literária e ainda está sendo, mal se sabe se uma obra da época foi ou não forjada, ou se uma foto foi ou não remontada. A cultura sujeita a uma dimensão que reduz as manifestações individuais e coletivas, sempre estará propícia a encontrar meios paralelos para se propagar, pois são as pessoas que a fazem, o que precisam e o que sentem.
Archinov, não pôde ir ao enterro de Makhno e se esclarecer. Makhno morreu pensando que fora totalmente repudiado, pelos anarquistas espalhados pelo mundo a fora, e por seu velho companheiro, Archinov.
Há quem acredite que Archinov fez algo extraordinário.
“Há uma escola de pensamento que crê que Arshinov colocou seu repúdio ao anarquismo como uma cortina de fumaça para que ele pudesse retornar à Rússia para ajudar a organizar o movimento anarquista clandestino lá. Nós sabemos que o grupo Dielo Trouda manteve contato com esse movimento, e Ante Ciliga no Enigma Russo se refere a ele como extremamente bem organizado. Nós não podemos ter a certeza de uma forma ou de outra, até que todos os registros mantidos pelas autoridades russas sejam olhados pelos pesquisadores. Esperamos que algum pesquisador faça em breve.”
Ed, em Libcom no artigo Biográfico sobre Archinov, http://libcom.org/history/arshinov-peter-1887-1937
Por fim, aí está uma parte da construção moderna do direitos fundamentais do cidadão, esquecida, provavelmente em forma de ossos nos antigos campos siberianos de trabalho forçado, cemitérios enevados do stalinismo.
Fontes:
*Arquivo Público Histórico de Moscou
*História da Makhnovischina, de Archinov
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2 comentários:
Leandro,
parabéns e, principalmente, obrigado por esse artigo!
Bem vindo à Sam!
É uma honra. Obrigado pela boa recepção.
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