Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 11 de março de 2010

a carta I

Maria de Fátima
Minha querida Matilde

Escrevo-te de um lugar de guerra
Um lugar sem nome
Escrevo-te num dia da semana entre dois domingos – será hoje dia santo?!
E nem sei se é Janeiro, ou se será Dezembro, ou um outro mês que fique de permeio
Mas o ano em que escrevo, esse, sei: mil novecentos e sessenta e oito
Eu já fiz vinte anos e tu farás dezoito.
Matilde bem amada
Consolação da minha alma triste. Canção que me cantam os anjos quando ando de arma em punho a catar sei lá eu bem que inimigo.
Tão calmos que eram os teus abraços. Neles me aninho em sonhos doces, como doce é o teu regaço onde irei deitar-me todos os dias que me restarem depois deste degredo.
No teu colo macio é onde durmo quando tenho a bênção de um recolhimento. E revivo-te.
Meu querubim, minha alfazema, meu tesouro ignoto de preciosas pedras. Minha abelha rainha, imensamente nua daquele pano.
Tu a unires as sobrancelhas, a franzir os teus olhos mais verdes do que os muitos verdes por onde me caminho.
Tu a dizer-me: a capulana, deixa estar, Tiago, que ela há-de soltar-se.
E rias-te, desengonçavas o teu corpo muito virgem para rires do meu desassossego, das minhas mãos tremendo por não saberem como desatar os nós dos teus vestidos, não terem o mister de retirar os panos com que tapavas os segredos do teu corpo.
Naquela tarde, a tua capulana estava atada com um nó corrido. Quando o nó se desfez, assim num por acaso, surgiu o teu corpo livre de mais atavios. Sublime.
Tu, minha Matilde, a mostrares-te nua, e eu de olhos piscos como se os entontecessem luzes de meio-dia em Agosto.
Ai Matilde, minha doce Matilde, que naquela tarde cheiravas a sargaço e a limos. Ou seria de estarmos na maré vaza e o cheiro vinha dos caranguejos que por ali se passeavam, e das lapas, curiosas, a soltarem-se das rochas?
Seria o cheiro que tu tinhas, ou seria a maresia, minha doce amante, minha querida?
Mas que importa saber a que cheiravas, se eu sei que o teu perfume é o dos lírios no altar de todas as Nossas Senhoras que há por esse mundo?!
Minha adorada Matilde!
Deste lugar de sangue e ódio, deste local tão longe, envio-te mãos cheias, cordões e mais cordões de letras a dizerem: Amo-te. Que a palavra se repita, que reverbere dela o ar dos locais onde respires.
Este que será teu para toda a eternidade
Tiago



Share




0 comentários:

Postar um comentário