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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Silêncio


Joaquim Bispo

Todos chamavam Plantão ao louco da pequena vila de Sabugal. Calcorreava a povoação, descalço mas com garbo, como se medisse cada passada com exactidão. Entrava nos cafés, avaliava os circunstantes e dirigia-se a um deles. Ficava a olhá-lo, sem dizer palavra, sem estender a mão, direito e parado. Conhecido por todos, geralmente obtinha do visado a moeda que almejava. Plantão recebia a moeda e retirava-se sem agradecer. E recomeçava a ronda. Dizia-se, sem ninguém conseguir confirmar, que tinha sido seminarista e tinha ficado enlouquecido entre os ditames da religião católica e os textos dos filósofos niilistas. Dizia-se.
Era uma figura que, pela sua presença constante, já não se estranhava e até se respeitava, na sua loucura serena. Mas, certa vez, aí por fins de Janeiro, um rapazote de nome Inácio, querendo talvez divertir-se à custa dele, trouxe um violino sem cordas que encontrara no sótão e deu-o a Plantão com um sorriso maroto. Este ficou a olhar demoradamente para o instrumento e passou a transportá-lo debaixo do braço. De vez em quando, sentava-se na berma do jardim, colocava o violino na posição de tocar e começava a menear a cabeça como se imaginasse as notas. E ficava lá horas esquecidas.
Foi desde essa altura, também, que o rapaz que lhe dera o violino, o Inácio, começou a desatinar, a dizer que ouvia música na sua cabeça e que era o Plantão que a provocava. Todos se riram dessas declarações e gracejaram, dizendo que estava a ficar mais louco que o pobre Plantão.
No sábado de Entrudo, Plantão transformou-se. Talvez influenciado pelos vários mascarados que, singularmente ou em grupo, percorriam as ruas da vila dizendo pilhérias e fazendo momices, Plantão passou toda a tarde na rua principal, para trás e para a frente, a fingir que tocava, sem arco, o seu violino sem cordas. Toda a gente se surpreendeu com a transformação exuberante de Plantão, mas acharam-lhe piada. Os mais novos, vendo nele um alvo fácil, começaram a bombardeá-lo de longe com bolas de farinha e a esguichá-lo com pistolas de água, que ele parecia ignorar, mas foram rapidamente censurados pelos mais velhos. Pelo fim da tarde, surgiu Inácio, de rosto enlouquecido, a berrar para o Plantão parar, e a tentar arrancar-lhe o violino, intento de que ele se esquivava. A cena, de tão concertadamente burlesca, suscitava grandes gargalhadas e levava alguns transeuntes às lágrimas.
A encenação repetiu-se na tarde soalheira de domingo, entrecortada uma ou outra vez pelas habituais e bem ensaiadas contradanças, que se exibiam nos largos e nos cruzamentos das ruas. As pessoas, agora, em vez de rirem, paravam a apreciar o rigor gestual e o espectáculo fisionómico do violinista fictício. Inácio, pelo seu lado, começava a deixar de ter piada, tão deprimente era a sua cara, chorando e implorando para que Plantão parasse de tocar.
Segunda-feira fez-se um intervalo nas brincadeiras, excepto Plantão que passou a tarde “a ensaiar” na berma do jardim. Quando Inácio apareceu tentando agredir Plantão, foi severamente admoestado por tão rude procedimento e enxotado dali para fora.
Terça-feira foi a grande apoteose de Plantão e a grande atracção do Entrudo da vila. Parado no largo principal, dava o concerto da sua vida, com tais meneios de corpo, tal virtuosismo de gestos e expressões que só faltava mesmo ouvir-se a música. No entanto, um ex-sargento que tocara na banda da Armada, disse que reconhecia uma das músicas que Plantão parecia tocar. Toda a tarde Plantão tocou para quem o quis ver. De Inácio, nem sinal.
Quando as velhotas se encaminhavam para a missa das sete, já em quarta-feira de cinzas, depararam com Inácio caído no adro da igreja e esvaído em sangue. De cada ouvido ensanguentado sobressaía uma cavilha de violino.

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