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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Rasto de Sangue

Emanuel R. Marques

As hostilidades fermentavam já o previsível aroma da pólvora. Uma primeira esguia e inexperiente bala quebrava numa fracção de segundo a antecedente exaltação vocal. Todos corriam a cobrir-se, esconder-se, a irremediável fuga a um dia de derrota. Fora como um raio a chicotear um belo céu azul.

Mas, voltando à singela bala que deu o mote de partida, é de salientar que esta foi ocupar posição numa enorme e anónima janela, que teve o infortúnio de ser arquitectada sob aquela orientação. Soaram estilhaços de vidro que causaram o iminente pânico.

O grupo que Pedro comandava assumia a posição de retirada após esta inesperada investida dos seus rivais. Pedro, estonteado pela surpresa, procurou abrigo no nauseante contentor de lixo, que expelia os seus odores poucos metros atrás.

Há bastante tempo que ele antevia a chegada deste dia, em que as armas assumiriam o papel supremo entre os “gangs” da zona. Era uma das leis de sobrevivência para quem vive este tipo de vida. Apesar desta atitude rival pressagiar o aumento de crimes, vinganças e destruição de vidas, Pedro sentia uma inexplicável alegria. Talvez não seja assim tão inexplicável. O seu adorado revólver, símbolo de respeito para os seus amigos e seguidores, podia agora acordar e oferecer certidões de óbito aos inimigos.

No entanto, apesar de toda a coragem e petulância que o pobre rapaz expressava, o seu íntimo coração escondia um camuflado receio. Há muito tempo que o seu objecto bélico podia ter começado a cultivar opressão, mas Pedro não conseguia ser o primeiro a disparar, o seu sangue frio era ainda morno e necessitava de ser motivado por uma iniciativa exterior.

Enquanto ele se deliciava com excitantes reflexões, orgulhosamente escondido por finalmente estar despoletada uma guerra real, como as cinéfilas visões que lhe pulverizavam a mente com insóbrias fantasias, o tempo sucedia-se ao disparo. O ferimento que ele julgava ser um mero arranhão, que lhe incendiara o ombro, ao refugiar-se da trajectória maléfica, quando se atirou velozmente às traseiras do contentor, arrefecia agora de dor para um marco de sangue. Apesar da dinâmica da fuga ainda havia sido atingido pelo rasto do disperso projéctil.

De súbito, todo aquele fervor que crescia embebido em adrenalina e estupefacção, tornava-se em penoso sofrimento. Os incontestáveis súbditos tinham desaparecido instantaneamente após o grave ronco da besta de fogo, corrompendo as imaturas promessas de fidelidade. Não havia ninguém para o socorrer e, no entanto, também ele não se atrevia a procurar alguém, a abandonar o seu ninho metálico, pois os rivais poderiam estar ainda no local e, nesse caso, a fatalidade seria inevitável.

Na verdade, também os escassos rivais, nomeadamente o autor do disparo, haviam fugido amedrontados pelo desvirgar da situação.

Pedro sabia a superficialidade do seu ferimento, mas o inesgotável sangue começava a adornar o cinzento solo em húmido escarlate. As dores continuavam a progredir, tendo apenas como anestesia a sede de reencontrar os companheiros e planearem uma implacável vingança. Também uma tumultuosa sensação de abandono lhe percorria o corpo, deixando nesses pensativos momentos que a dor lhe arrancasse alguns lúgubres gemidos.

Decidiu nervosamente espreitar e certificar-se da presença de alguém, amigo ou inimigo, que ainda estivesse na periferia do acontecimento.

Ninguém! Apenas alguns transeuntes caminhavam despreocupadamente alheios ao sucedido.

Reparou então na cicatriz que a bala deixara na vidraça da janela atrás de si.

Não haveria ninguém para reclamar o dano, visto que a bala fora pousar no interior de um armazém abandonado – pensava Pedro, como se os verdadeiros chefes de quadrilha se preocupassem com os danos provenientes das suas guerras.

Ao ranger dos dentes levantou-se num único impulso de vontade, vasculhando de seguida na sua obstinada mente possíveis soluções. O crucifixo que balanceava no seu pescoço irradiava um intenso brilho de penumbra. Os seus cuidadosos passos, já inseridos numa pequena movimentação humana oriunda de um final de tarde, eram desmascarados pelo braço recolhido, que estava resguardado pela mão esquerda, e um previsível casaco que deixava transparecer nódoas de sangue fresco. Um rasto vermelho ia ficando da sua malograda passagem. Cada segundo era marcado a conta-gotas de sangue na irreversível ampulheta do tempo.

A sua primordial preocupação não eram os curiosos observadores que fingiam acreditar no seu encenado, e mal disfarçado, bem-estar. Logicamente que ninguém se iria intrometer nas rixas juvenis que todos sabiam assombrar a zona, aliás, qualquer tipo de ajuda oferecida a um membro ferido de um bando poderia causar possíveis represálias e violências por parte dos rivais. Assim, a atitude mais indicada seria a de ignorar aquele jovem ensanguentado.



A sua mãe! Esse era o motivo que consumia a sua confusa cabeça. Como confrontaria ele a preocupada mulher no estado em que se encontrava. Como lhe explicaria ele o porquê de ter sido alvejado?

Era claramente nítido na sua cabeça o facto de este acontecimento ir avolumar os receios que a sua mãe tinha em relação ao seu modo de vida. A pobre velhota iria fazer um pranto salgado assim que o visse embebido no próprio sangue, e ele não queria torturá-la com tamanho desespero e pânico. Ainda tinha na memória o desgosto que a sua progenitora tivera no dia em que ele abandonou o rotinar pelos recreios da instrução em prol de um duvidoso deambular citadino. O seu pai, honesto trabalhador sempre preocupado em dar o melhor à família, havia de conseguir mudar o rumo do filho. Infelizmente, uma estranha doença levara-o anos antes de o filho ter tomado esta desenfreada escolha.

A solução? Talvez a sua namorada ainda estivesse em casa e o pudesse ajudar a limpar e tratar da ferida, ou, quanto mais, fosse ajudá-lo a camuflar os indícios, de modo a que a mãe não notasse nada.

Assim, com este desesperado objectivo em mente, se foi arrastando pela perspectiva das ruas, largando cada vez mais os silenciosos caudais da vida. O cansaço consumia-lhe a estabilidade física e mental. Sucessivas tonturas levavam-no a encostar-se às rígidas paredes que lhe amparavam violentamente o movimento. Decidiu finalmente descansar sentando o seu fraco corpo no marmóreo e gélido degrau que dava início a umas curtas escadas. O seu coração dava as últimas badaladas anunciando a hora da derradeira partida. O ferimento não fora, afinal, tão superficial quanto ele julgara; talvez até houvessem sido disparadas duas balas, em vez de uma somente A guerra tinha acabado para ele, ou talvez ele viesse a ser o motivo, o símbolo que levaria à guerra os seus camaradas.

Afinal, a sua mais recente intenção até ia ser conseguida – não teria de confrontar a sua mãe naquele estado lastimoso.


Sobre o autor
Emanuel R. Marques: Nascido em Aveiro, Portugal. Formado em Comunicação Audiovisual. Actualmente, além de continuar atento e ligado às várias artes pelas quais sente interesse, vive a crise do país a trabalhar num Museu. Continua a acreditar “…que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança…” “Autor do livro de contos “Sui Generis-Contos DeMentes” e do livro de poesia “Madrugadas indefinidas”. Tem colaborações nas revistas “Miasma” (Espanha), “Gótica” (México), Juvenatrix (Brasil), Lama (Brasil), Revista da editora Alma Azul “O Mal” (Portugal), “Abismo Humano” (Portugal), Terrorzine (Brasil). Participa das antologias “Novos talentos fantásticos” e “Poetas em desassossego”.

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