Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Duas de cinquenta e três de vinte

Léo Borges


– Mãe, está me ouvindo bem? Esse barulho todo é porque um bloco está passando por aqui... não, não vou me fantasiar de odalisca desvairada nesse carnaval, não, isso é coisa do passado... pois é... estou, mãe, estou me alimentando bem, sim... a senhora já perguntou isso da vez passada... não, não tenho comido vespa assada nenhuma, só disse que já falamos sobre minha dieta antes. Mãe, eu tenho de ir porque o Barbosa está me esperando. Não, mãe! Nada a ver com o Bar da dona Rosa... já parei de freqüentar essa espelunca. É o Barbosa, meu colega. Isso! Ele mesmo, o Barbosa da polícia... parece que houve um derrame e... não, mãe, o Barbosa não teve AVC nenhum, não! Derrame é o nome que se dá para a entrada de notas falsas em circulação. Está havendo um problema desse tipo aqui e precisamos investigar. Fique calma que está tudo bem... certo... pode deixar... pode deixar que eu cobro o perfume que o Barbosa não pagou... mas, olha, ele reclamou que teve queimaduras no braço com esse perfume. A senhora tem que parar de comprar essas coisas no Paraguai! Tudo bem... agora eu tenho que ir porque vou pra delegacia de carona com o vizinho, o meu Fusca está nos estertores. Não, não pegou fogo... eu não disse extintores, falei estertores! Ele está agonizando, caindo aos pedaços. Bom, fica com Deus e Nossa Senhora do Embargo... ops, sim, sim... desculpe... do Amparo! É que a prefeitura embargou a minha obra aqui na rua e estou com isso na cabeça...


Magalhães tinha de ter boa dose de tolerância quando falava com sua mãe, detentora que era de uma idade avançada. Mas ela também já tivera muita paciência com ele em sua infância. Principalmente quando o moleque resolvia usar seu estilingue contra os pombos.


– Meu filho, já não lhe disse para não atirar pedras neles?


– Mas, mãe, eles estão comendo pedrinhas no chão de qualquer jeito!


– Não, meu filho, eles não estão comendo pedras. Estão ciscando o chão para encontrar comida. Eles procuram entre a poeira e a terra algum grão, alguma migalha para se alimentar. Pombos simbolizam a paz. Use essa sua energia de caçador para brincar de polícia e ladrão. E seja sempre o mocinho!


Magalhães compreendeu que estava maltratando bichinhos inofensivos e interessantes e, por isso, reverteu sua energia para o futebol, o jogo de peteca e, claro, para brincar com a turma naquilo que dava mais adrenalina: polícia e ladrão! Depois de crescidos, muitos se mantiveram fiéis aos ofícios da infância: alguns, como Magalhães, entraram para a polícia, e outros, para a política.


O vizinho já estava com o filho dentro do carro, só aguardando o investigador.


– Desculpe o atraso, Jorginho, é que estava com minha mãe no telefone e você sabe como elas são, né?


– Tudo bem, Magal. Só preciso lhe dizer que ainda tenho que deixar o Arthur na matinê carnavalesca do clube.


– É por isso que ele está todo fantasiado de periquito?


– É um falcão – interveio o menino, arrumando as plumas nas costas.


Magalhães assentiu com um afago na cabeça do guri, ignorando seu ar sério, até porque gafe com crianças nunca chega a ser uma gafe completa. Como a investigação das tais notas falsas naquela sexta-feira pré-carnaval não era caso tão urgente, ponderou que atrasar-se um pouco não seria problema.


– Muito trabalho no combate ao crime, Magalhães?


– Bastante, Jorginho. Hoje, por sinal, o Pombo vai bater as asas.


– “Pombo”?! Nem me fale em pombos... desde que embargaram a sua obra que esses pombos não deram mais sossego. Estão empoleirados nos escombros e alguns até fizeram ninho no meu telhado. Eles não criam problemas para você não?


– Eu gosto desses bichinhos. Por sinal a tal obra é um poleiro gigante que estou construindo ao lado do muro. Todo esse carinho é porque “Pombo” é o nome de batismo da minha dupla na polícia. Eu e Barbosa formamos a Equipe Pombo. Quando tinha a idade do seu filho descobri que esses pássaros são grandes investigadores. Vasculham restos para encontrar o que querem, e em termos comparativos é mais ou menos o que nós fazemos. “Po” vem de “Polícia” e “MB” de "Magalhães e Barbosa". Como na regra ortográfica: sempre perto do B, vem o M; sempre perto do Barbosa, vem o Magalhães.


– Pai, pombo não é aquele passarinho que caga nas estátuas?


– Meu filho – disse o pai tentando driblar a saia justa –, todo mundo faz cocô...


– É verdade – completou Magalhães –, mas nem todo mundo investiga bem!


O policial torceu para que o chato do guri não questionasse sobre a última letra da sigla. Ele costumava dizer que significava “Oniscientes”, embora alguns afirmassem que o "o" era de “Obtusos”.


Barbosa já o aguardava com alguma intranqüilidade na porta da DP.


– Como é que é, Magalhães? As onças falsas aí fora correndo e você desfilando no bloco dos cornos? – satirizou, enquanto o colega saía do carro.


– Corno é quem usa perfume paraguaio, meu amigo – retrucou rindo. – Alguma novidade? São duas de cinquenta e três de vinte mesmo? Qual a fonte?


– Denúncia anônima. Elas foram vistas na Zona. A notícia chegou distorcida.


– Zona que você diz é o Bar da dona Rosa?


– Zona Portuária. Parece que um capitão da Marinha desembarcou com elas na semana passada. Vamos procurar por lá. O bordel da dona Rosa não está fora de cogitação, claro, até porque é o tipo de local onde os marujos freqüentam e fica ali perto.


Magalhães e Barbosa passaram cinco segundos em silêncio, pensando na possibilidade de terem de voltar ao Bar da dona Rosa. Foram assíduos do cabaré até quando este passou a ser freqüentado por policiais. Os integrantes da Equipe Pombo se consideravam agentes diferenciados e não compactuavam com certos maneirismos dos colegas de labuta, como, por exemplo, beber sem pagar, comer sem pagar e, principalmente, fazer sexo sem pagar.


Magalhães e Barbosa, então, pegaram os instrumentos pertinentes para aquele serviço, canetas-marcadoras que constatavam ou não a autenticidade das cédulas, e saíram. Caso um traço rabiscado tomasse um tom róseo, estava decretada a falsidade.


Ao se aproximarem do cais, abordaram um grupo fardado de branco:


– Senhores, precisamos de uma informação sobre duas onças.


– A matinê das onças é só amanhã, gatinho. Hoje o baile é dos marinheiros!


Barbosa, ao ver que os marmanjos eram apenas foliões fantasiados, soltou um palavrão e continuou no trajeto até o píer.


– Aqueles ali aparentam ser marujos de verdade. Devem saber de algo – sussurrou Magalhães, observando alguns homens jogando cartas.


– Por favor, – disse Magalhães, pedindo a palavra – algum de vocês viu duas de cinquenta e três de vinte falsas circulando por aqui?


– Duas de cinqüenta falsas?! – repetiu o que estava com um cachimbo no canto da boca, gargalhando em seguida. – Vimos, sim! Apareceram semana passada e estão na região. Circularam, mas ninguém pegou. Barra pesada. Acho que foram parar na Dona Rosa.


– E as três de vinte?


– Essas não pareciam falsas. Um estivador pegou e disse que não eram.


– E o que ele fez?


– Passou adiante.


– Se elas forem falsas, é crime! – soltou Barbosa, zangado.


– Se é crime, desconheço. Mas lembro que ele falou em sessenta reais.


“Exatamente”. Pensou Magalhães. “A soma das notas falsas de vinte é sessenta reais e agora elas estão sob o poder de algum incauto”.


– Mais alguma informação, caro lobo do mar? – quis saber Barbosa.


– Essas de vinte tinham desenhos, mas não lembro o que eram. Ouvi dizer que simbolizariam a paz.


“Marcações nas notas! Isso facilitará as coisas...”, pensaram. Viram que procurar o tal trabalhador portuário seria infrutífero e que o mais lúcido era seguirem direto para o Bar da dona Rosa, o decadente bordel das docas.


No estabelecimento, que estava muito diferente desde a última vez que estiveram lá para “saborear as delícias da casa”, conforme o slogan na porta apregoava, encontraram alguns bêbados, outros alcoolizados e, por fim, pessoas embriagadas. O lugar era muito mal iluminado e a música do Julio Iglesias tornava o ambiente ainda mais sombrio.


– Quero falar com a dona Rosa – disse Barbosa para uma das atendentes, nua da cintura para cima.


– Barbosinha?! Você por aqui? Quanto tempo! – retrucou a garota.


– Não te conheço, minha filha – disse um incomodado Barbosa. – Por favor, chame a dona.


A prostituta saiu um tanto consternada e foi chamar a proprietária. Duas mulheres obesas e mal cuidadas, aparentemente fantasiadas de Carmen Miranda – ou de algo semelhante –, quando souberam que se tratava de diligência policial, surgiram com cara de poucos amigos.


– O que é? – perguntou a menos amistosa, com uma voz rouca, particularmente esquisita.


– Você não é a dona Rosa – disse Barbosa, lembrando-se que Rosa era magra, alta e odiava adereços na cabeça.


– Não. Chamo-me Madame Cat. Eu e a Baronesa Pussy compramos o estabelecimento da dona Rosa na semana passada. Em que podemos ajudar?


– Sou o policial Barbosa e quero que a senhora me mostre o cofre.


Madame Cat se pôs de costas e começou a abaixar a saia. Ao perceber o constrangedor engano, Barbosa tossiu forte e explicou melhor o que queria:


– O cofre a que me refiro é o caixa! Quero ver as cédulas. Estamos investigando um caso de falsificação e o ponto final do crime parece ser este estabelecimento.


Com as notas em mãos, Barbosa passou a ticar cédula por cédula utilizando a caneta verificadora e não se deu conta de que Magalhães havia sumido por entre os quartos.


Por vezes, o policial passava a caneta no próprio braço para ver se ela estava funcionando a contento. Nas notas verdadeiras o instrumento não deixava marca nenhuma, enquanto que na pele ela sempre deixava um rastro preto.


– Essa cicatriz no seu braço é de tanto procurar por notas falsas? – perguntou Baronesa Pussy.


– Não. Isso aí foi perfume. Notas falsas não machucam tanto...


E foi nesse instante em que, por descuido, Barbosa tocou com a ponta da caneta no braço da Madame Cat. Pasmo, olhou para a marca que, naquela pele, começava a ganhar uma coloração rosada. Baronesa Pussy, vendo os olhos arregalados de Barbosa e movida pela curiosidade, pegou a caneta e a passou em seu próprio pulso. O susto do policial dobrou de tamanho ao ver que na pele desta gorda o risco também ficava rosa. Ele sacudiu a cabeça não acreditando no que via. Em qualquer pele o traço era negro, não havia discussão. O tom róseo surgia apenas em objetos que não eram verdadeiros!


A incongruência das cores confundiu o raciocínio de Barbosa até o momento em que ele desceu o olhar para o peito das figuras à sua frente. Ali ele percebeu que a caneta não errara: por entre o decote da fantasia viu pêlos, pêlos em profusão! Sem hesitar, o policial meteu a mão nos adornos coloridos sobre a cabeça das mulheres e os puxou: carecas! Eram, na realidade, homens! Travestis de 50 anos, donos do outrora glamouroso Bar da dona Rosa.


No mesmo instante Magalhães apareceu por trás, gritando como se desvendasse a segunda parte do mistério:


– Barbosa! Descobri a farsa das três de vinte!


Barbosa, aturdido com o que descobrira, virou a cabeça para ouvir o parceiro:


– As supostas notas de vinte falsas não são notas, são mulheres! E todas as três são menores de idade: 16 anos, mas mentem pra todo mundo que têm 20! Meninas assim são tidas no mundo da prostituição como “mulheres falsas”. O preço do programa de cada uma era vinte reais, por isso, sessenta reais foi o valor que o estivador pagou pelas três, e não a soma de supostas notas falsas.


Ao ver os travestis ajeitando suas perucas, Magalhães quis saber o que os elementos tinham a ver com a história.


– “Elas” – disse Barbosa apontando para os gigolôs –, são as duas de cinquenta falsas. A falsidade aqui é o sexo e não as notas.


– Não brinca! – disse Magalhães querendo rir, mas contendo-se para não desmoralizar o serviço.


– De qualquer modo há crime: prostituir menores de idade – completou Barbosa. – Mas, Magalhães, como você descobriu que elas não tinham 20 anos? Pela carteira?


– As carteiras são falsas. Descobri pelos desenhos. Lembra o que um dos marinheiros disse? Os desenhos sobre “simbolizar a paz” não eram marcações nas notas frias, mas tatuagens temporárias de pombas brancas na virilha das moças. Para o mercado do sexo isso quer dizer que são muito novas. Mas elas só admitiram que eram menores de idade quando engrossei e afirmei que o único “Pombo” ali era eu e que a coisa ia feder se não falassem a verdade.


– Isso é um escárnio com nossa equipe, Magalhães! – zangou-se Barbosa.


Os policiais algemaram as duas de cinqüenta falsas por rufianismo e deram um sermão nas três falsas de vinte. Enquanto falavam, porém, um bêbado fantasiado de almirante resolveu entrar em cena. Agitava uma cédula estranha, onde o número 50 e a onça que a estampavam pareciam borrados, com pouca nitidez e sem a marca d’água.


– Opa! Alguém troca essa nota de cinquenta aqui pra mim?

Share