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terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Pouca Sorte


Joaquim Bispo

Há dias em que um homem não devia sair de casa; o problema é que só o sabe tarde demais, como bem se lamenta o meu vizinho António, que me contou o que se segue:

Foi aos Correios levantar uma encomenda e deu de caras com um antigo colega de liceu, a quem na altura toda a gente chamava «Fosquinhas». Feitas as saudações e as manifestações de regozijo adequadas a tão longo desencontro, António fez a pergunta que o perdeu:
– Então, vai tudo bem contigo?
Gustavo, o amigo, desforrando-se de um longo jejum de ouvintes complacentes, sorriu tristemente, antes de desenrolar o seu manto de frustrações e infelicidade:
– Sabes lá?! Não tenho sorte nenhuma. A minha vida é um vale de lágrimas. Tudo me corre mal.
– Não me digas! Não tens trabalho? – preocupou-se António.
– Tenho, mas é só para sobreviver. Sou o responsável pela fotocopiadora da minha empresa.
– Mas isso deve dar um ordenado muito baixo! Não tens tentado progredir?
– Aquilo lá é um covil de mafiosos. Fazem o joguinho só entre os amigalhaços.
– Mas, tens concorrido? Ou nem concursos fazem?
– Concorrer? Para quê? Está tudo cozinhado. Uma vez experimentei, mas disseram que eu não tinha habilitações.
– E tu, tens-te valorizado? Voltaste a estudar?
– Tenho lá dinheiro para isso!
António começava a ficar sem ideias para melhorar a vida do amigo.
– Tens filhos, casaste?
– Sim, casei, mas não correu bem. Seis meses depois de casarmos, ela voltou para casa da mãe dizendo que «preferia não voltar a ver homem algum, que viver com um falhado destes». Diz-me se isto não magoa! Mas ela tem razão, eu não presto – choramingou Gustavo.
António sentiu-se desconfortável com o amigo a lacrimejar à sua frente. Olhou em volta a medir o impacto nos presentes.
– Olha, Gustavo, anda daí apanhar ar. Claro que tu tens valor, toda a gente tem.
– Não sei, António. Os outros passam-me sempre à frente. Nasci para sofrer.
– Nada disso. Só precisas é de um empurrãozinho. Amanhã podes ir à baixa, aí às dez horas? Vai ter comigo que eu vou ver o que se pode arranjar.

No dia seguinte, Gustavo apareceu às dez e meia.
– Eh, pá, desculpa. Não estou habituado aos transportes cá para baixo.
– Tudo bem. Olha, estive a falar aí com um director, disse-lhe que eras um gajo porreiro, a ver se te arranjava qualquer coisa para começar, mas que fosse melhor que responsável da fotocopiadora. Ele disse que estão a precisar de um operador de folhas de cálculo, só para meter dados, para já. Sabes Access?
– Não, nunca liguei a computadores.
– Não faz mal, eu dou-te uma ensaboadela. É muito intuitivo. Não podes meter férias lá nesse emprego para vires uma semana à experiência?

Enquanto Gustavo não conseguia um tempo, foi aprendendo uns rudimentos de Access no computador do amigo. Quando ia lá a casa, tecia sempre comentários elogiosos às pinturas de António que este tinha espalhadas pela casa.
– Tu és genial! Eu também gosto de pintura mas não tenho jeito nenhum.
– Já experimentaste alguma vez?
– Sim, uma vez comprei umas aguarelas no supermercado e estive a pintar, mas saiu uma borrada…
– Mas, se gostas, porque é que não vais para um desses cursos de pintura, que até as juntas de freguesia têm?
– Isso é um dom. Ou se nasce com ele ou não.
– Olha que eu melhorei bastante nesses "ateliers". Dizem que uma obra é muito mais transpiração que inspiração. O jeito melhora com a prática.
– Ná, não é para mim. Eu escrevo é uns contos. Já tenho uns sete ou oito. Estão lá arrumados numa gaveta.
– A sério? Gostava de ver isso.
– Não, não! Não estão grande coisa. Não tenho coragem de os mostrar a ninguém. São só para mim.
– Se quiseres publicar, tens que os mostrar a alguém… – ironizou António. – E escrever muitos mais. Os escritores conhecidos dizem que escrevem todos os dias.
– Gostava de ser um escritor famoso, mas não tenho muita pachorra para escrever. E, mesmo quando estou entusiasmado, bloqueio, por não saber muito bem como hei de escrever.
– Mas, se achas que gostas de escrever, porque é que não investes nessa área? Há muitos livros práticos, há "workshops", há clubes de leitura. E, há as faculdades. Não fazem escritores, mas fornecem ferramentas muito importantes.
– Tirar um curso? Estás parvo! Não tenho dinheiro para isso, nem estou para passar anos a polir os bancos da universidade só para escrever. Quando quero, escrevo, mesmo que não saia muito bem. Acho que é uma questão de sensibilidade, mais que de técnicas ou conhecimentos.
– Eu só queria ajudar! – arrependeu-se António.

Uns tempos depois, Gustavo chegou a fazer a tal experiência na empresa onde António trabalhava, mas não passou de uma semana. O director, de mãos na cabeça, veio ter com António, queixando-se que o amigo ficava parado a olhar para o ecrã, que introduzia dados trocados, que não tinha apetência por conhecer novas funcionalidades do programa. Pediu desculpa, mas que assim Gustavo não podia ficar. Quando António comunicou a decisão ao amigo, este mostrou-se muito abatido:
– Comigo, corre sempre tudo mal. Eu não te disse que não tenho sorte nenhuma? Felizmente, posso voltar para o mesmo trabalho com a minha fotocopiadora, que essa conheço eu bem. Só que o meu chefe soube desta escapadela e cortou-me as horas extraordinárias. Já viste a minha pouca sorte?!
– Eu só queria ajudar! – desculpou-se António com ar pesaroso, mas por dentro ria impiedosamente.

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5 comentários:

De fato o trabalho artístico é mais transpiração que inspiração, mas uma boa dose dessa última nos mantém mais secos.

Este é um texto seu que eu já conheci, mas é bem isto mesmo, como diríamos no Brasil, "um sujeito com braços curtos".

Abraços.

Muito bem Joaquim! belíssimo texto!

Tratou do destino de forma peculiar.

Bem, este já não me apeteceu tanto, pois dificultou-me a visualização cênica com toda essa rebuscado texto.
Acho que por nunca ter visto um, me bloqueia um diálogo assim surreal como este.

Falta ao Vinny conviver mais com os tuga. Com o tempo vc se acostuma, e vais até gostar, pá.

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