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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

papoilas de janeiro


Maria de Fátima


porque é janeiro
porque faz um ano que este texto deu nome ao meu livro

porque a Samizdat está em festa
deixo-o assim em jeito de oferta











Contam-nas letras soletradas.
Imagens pintadas uma a uma com verbos conjugados em tempo e em pessoa. E com advérbios, um ou outro adjectivo, frases e meias frases.
Contam-nas.
Nuas nas palavras.
Cada peça de roupa retirada: nem botões, nem molas, nem colchetes.
Nada mais que uma fita de nastro, ou seda fosse, deslaçada, atando as abas: duas frases, entre um travessão e um ponto.
Nada mais que duas frases sobre pele e alma.
E o silêncio das letras mal paradas: pontes de sílabas, hífenes, plurais e espantos.
E a seda da fita, ou que fosse nastro, uma ponta da outra desatando. Um cordão deslaçado, escorregando.
Destapada a alma sob os seios, o ventre, a pele de cada perna, as nádegas.
Contam-nas, em frases esfarrapadas.
Soltam-se chinelos e sapatos e soquetes e meias. Caem pelo chão protecções de vulvas e saias e vestidos e roupinhas rendadas que afagam as mamas.
As moças, garridas e vaidosas, vêm dos bailes a horas. Esperam-nas em casa o pai, a mãe e os irmãos.
Não usam espartilho, nem saiote, nem combinações.
Virgens.
Sem mácula que aquela que lhes deixam as letras com que as contam: corroem como bicho em madeira.
Louras ou morenas, sabem que os olhos que deviam eram verdes: esses, os olhos dos deuses nas mulheres.
O sangue, se escorre, é de manso, num fio, fino, muito vermelho e quente. Na saia justa, acima do joelho, ou por baixo do vestido longo junto ao tornozelo.
Sangue escorrendo na coxa. Sangue que se esconde entre as nalgas, corre-lhes em segredos e há pássaros que voam, multicores, em céus de azul ou de cinzento e roxo.
Contam as palavras, desfeitas em letras e acentos, que no pino do Inverno nascem papoilas, campos delas: vermelho sobre o manto branco das serras.
E há frases que ecoam: as moçoilas esventram buracos, tocas de coelhos e outros, em busca da erva que desfaz o feito no canto mais sem luz do baile de há dois meses.
Buscam o sangue que lhes devolva os pássaros multicores e as papoilas de Janeiros.
Contam-nas as letras soletradas.
Os verbos conjugados em tempo e em pessoa.
Os advérbios, um ou outro adjectivo, frases e meias frases e traços e pontos. Muitos pontos.
Contam-nas.
Nuas nas palavras.

(Mais tarde das noites e dos bailes, contam-nas consoantes e vogais: não se cortam nem com facas pontudas ao esventrar uma galinha e nem na foice ao sol do meio-dia. Nem se picam com cardos ou picos de rosas. Cortam-se com tesouras de prata rendando papéis de seda. Picam-se nos bicos finos de agulhas costurando rendas ou entretecendo bordados em roupa de cama. Senhoras.)



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