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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O Bar dos Homenzinhos

Léo Borges



O machado de cortar lenha começava a pesar, perdendo sintonia com o ódio que seus olhos ainda deixavam transparecer. Mas, mesmo muito cansado, Menandro mantinha Mary Flower acuada atrás da mesa de jantar, procurando trucidá-la da mesma forma como fizera com as outras três vítimas dentro daquela bucólica casa. O ciúme de Menandro o impelia à crueldade: pretendia não apenas matar como também comer o coração de sua última vítima.


– Não me mate, não mereço morrer!


– Humm... “Não me mate, não mereço morrer!”­ de novo. Isso já foi usado no conto erótico – murmurou Libório, incomodado com a repetição e tentando encontrar algo que a substituísse.


– Você já morreu antes, papai? – perguntou Astolfo, atrapalhando, outra vez, seu raciocínio.


O escritor percebeu que foi um erro pegar o filho com a ex-mulher justamente no fim-de-semana do famoso e difícil desafio literário da editora Selbstgeben (“Auto-publicado”, em alemão). O concurso relâmpago, uma ótima oportunidade para escritores iniciantes, exigia que cada autor estivesse totalmente concentrado na elaboração de três diferentes textos. Quem determinava isso era o prazo, bastante exíguo, posto pelo edital da Selbstgeben: apenas 48 horas para os concorrentes produzirem as obras e enviarem pela internet. Desta vez estavam em pauta os gêneros conto – erótico e terror – e poesia.


– Claro que não, né, Astolfo? Para a infelicidade da sua mãe eu nunca morri! Eu estava era falando comigo mesmo – disse exasperado, mas adotando, logo em seguida, um tom didático. – Se você continuar interrompendo o papai, os homenzinhos das histórias não vão fazer o que deve ser feito e aí não vamos ganhar o prêmio, por isso, silêncio, tá?


Como Astolfo ainda insistia com novas indagações, Libório pegou uma folha em branco, uma caneta e as entregou para o menino:


– Tome, meu filho. Passe o tempo desenhando alguma coisa.


– Eles descansam, papai?


– Quem?


– Os homenzinhos.


– Não. Não descansam.


Duas e quarenta da manhã. Enquanto Astolfo desenhava preguiçosos rabiscos, Libório ia perambulando entre um texto e outro. O calor e o sono eram inimigos declarados, mas o perseverante escritor relutava em parar, pois não apenas o prêmio era bom como a competição por si só era bastante excitante.


Cintura fina, coxas grossas e um belo rosto. Nada mais habitava a mente de Mauro além da vontade de possuir Jéssica. Ela era casada, mas isso nunca foi obstáculo, pois, casamento, como ele sabia, não passava de mero papel assinado. E, assim, a aliança no anelar esquerdo da mulher servia apenas como a alavanca de um tesão pervertido. Todo esse clima, porém, fez Mauro se lembrar do desespero de sua ex-mulher quando descobriu uma de suas perfídias:


– Não me mate, não mereço morrer!


Lá estava a maldita. Suprimi-la sem dó poderia ser boa ideia, até porque nenhuma mulher morre ao descobrir uma traição. Passa-se um tempo e tudo volta ao normal ou, então, separações acontecem e, neste caso, outros contratos são assinados. Libório, anos atrás, assinara um desses até-que-a-morte-os-separe, que depois de indevidamente maculado, passou a lhe morder trinta por cento no contracheque. Por isso, para o autor, o estilo de vida despreocupado de Mauro é que era o ideal. Este não queria saber de folhas assinadas, queria era rabiscá-las, assim como Astolfo sonolenta e inocentemente fazia com o papel recreativo.


Nunca bebeu o amor,
sempre preferiu o mar,
a dor de Agenor,
marinheiro sem lar.
“Não mereço morrer,
não sem antes provar,
a embriaguez do viver,
destilada naquele bar”.


“Será que a banca vai entender? Sem lar, pois não bebia o amor, e aí ele precisou de um bar”, tentou explicar mentalmente o arranjo poético.


– Não se explica poesia! Poesia se sente e você sabe disso, Libório! – corrigiu-se, dessa vez em voz alta, preocupado com os problemas no último texto, logo o seu gênero predileto. – “Não mereço morrer..., não mereço morrer neste bar...”. Que coisa! Parece que os textos estão se homogeneizando. Deve ser o calor deste lugar que está furtando minha capacidade criativa, ou, então, é o sono. Preciso de um café. Ou de uma cerveja num bar...


– Um bar, papai, isso mesmo! Fiz um bar para os homenzinhos descansarem – disse o menino, cujo sono sumira súbita e misteriosamente, feliz com o desenho finalizado.


Libório viu que o filho estava sendo mais eficiente que ele em produzir obras artísticas. Desviou o olhar para o alegre Astolfo e, com paciência, compartilhou de sua alegria pela criação.


– Que bom, filho, tomara mesmo que descansem. Vamos dormir agora. Papai está igual a eles: cansado. Amanhã eu termino isto.


Antes de sair, o garoto largou seu desenho sobre os rascunhos do pai. Alguns traços lembravam uma cabana e outros se assemelhavam a mesas e cadeiras. Com pequeno esforço, lia-se sobre o amontoado de listras o nome “Bar”, e, embaixo, “dos Homenzinhos”.


* * *



– Cara, que calor!


– Ainda bem que criaram um boteco aqui pra gente passar essa noite.


– Verdade. Senta aí. Você está vindo de onde?


– Do erótico. Meu nome é Mauro. E o seu? – perguntou o homem vestido com uma bermuda e uma colorida camiseta.


– Agenor, da poesia – respondeu o indivíduo que ostentava a tatuagem de uma âncora no braço esquerdo.


– Poesia? Legal. Coisa bem romântica isso, né? Ouço falar que as mulheres adoram quem é poeta.


– Cara, apesar de atuar no ramo, eu não curto muito... prefiro gêneros com mais ação. E outra: eu não sou poeta, sou marinheiro. Poeta é o cara que me criou e me enfurnou entre rimas de qualidade duvidosa como “amor” e “dor”. Não combino com esse perfumado esquema diáfano da poesia, gosto do terror, onde você sente o cheiro de sangue, onde há a alegria de matar alguém, ou então esse seu gênero, lugar em que acontecem coisas, literalmente, muito gostosas. Estou certo?


– Mais ou menos. Nem tudo no meu mundo é verdadeiro.


– Como assim?


– As mulheres, por exemplo. Já viu conto erótico com alguma garota que não possuísse “cintura fina, coxas grossas e um belo rosto”?


– Não. Mas a sua parceira tem essas qualidades, né?


– Nada. A Jéssica é até muito simpática, mas está longe dessa perfeição propagada pelos discípulos de Anaïs Nin.


Nisso, aproxima-se outro homem, expressão extenuada.


– Opa, pode chegar, meu nobre – cumprimentou Mauro. – Vem de onde?


– Do terror. Menandro, muito prazer.


– Beleza, Menandro. Deixe ali o seu machado, meu velho. Aqui, em princípio, você não pretende matar ninguém, não é mesmo?


– Até porque, como vejo, o amigo aí já deu cabo de alguém: o machado está todo sujo de sangue – completou Agenor. – Conte aí, Menandro, como andam as coisas lá no teu interessantíssimo setor?


– Bem, esta noite já matei três. O último, inclusive, esperneou um bocado. Tudo, entretanto, dentro do previsto. Agora estou tentando matar a Mary, mas está difícil e cansativo. Esse negócio de matar, mata a gente. Sem trocadilho.


– Calma... em breve você vai picotá-la toda – profetizou Mauro.


– Verdade – completou Agenor. – Acho bacana, inclusive, que em muitos contos de terror o sujeito esquarteja a vítima e come seu coração. Nada contra. Aliás, torturar muito me compraz! Perdão pela rima. Força do hábito.


– Normalmente, quando isso ocorre, é porque o algoz está com fome. No meu conto acho que é porque ela não quis se entregar. Só mesmo o escritor para saber.


– “Se entregar”? Aí já entrou na minha área – disse Mauro.


– Falo em um sentido romântico-trágico – explicou Menandro. – Minha ação se traduz em “não é minha? Então, não será de mais ninguém”.


– E as outras mortes? – questionou Mauro.


– O sogro, a sogra e o cunhado.


– Claro. Nada mais natural – concluiu Agenor.


Os homens conversavam tão distraidamente que demoraram a perceber dois vultos femininos numa outra mesa.


– Cara! Olha lá a Jéssica conversando com uma gostosa! – excitou-se Mauro.


– Aquela é Mary Flower, a mulher que devo executar – observou Menandro.


– Que isso, rapaz? Matar aquela delícia?! – inflamou-se o protagonista da obra erótica. – Acho que esse nosso escritor se confundiu. Essa tal de Mary deveria estar é atuando comigo e não tentando se safar do amigo aqui com este machado rudimentar de cortar lenha...


– É, tem razão. E talvez ficasse ainda melhor na poesia: “...tantas flores e uma só Flower...” – suspirou Menandro, surpreendendo os colegas.


– Acabei de descobrir o porquê de nossas histórias estarem empacadas – irrompeu, de repente, um entusiasmado Agenor, como se resolvesse explicar sua teoria para uma pessoa invisível. – O assassino do machado tem uma queda pela lírica na mesma intensidade em que o Casanova aqui tem pela Mary, entretanto, estão impedidos de consumar seus desejos, pois atuam em papéis que não lhes agradam! E meu caso ainda é mais dramático: gosto de uma boa violência, mas estou nadando em poemas! Por isso sugerirei aos senhores uma troca ousada: vou para o terror, Menandro vem para a poesia, e a Jéssica morre pelas minhas mãos no lugar da senhorita Flower, que passaria para o erótico. O importante é findarmos os textos, da forma mais prazerosa possível, para que o cara que nos criou vença esse concurso e, assim, possamos descansar com honrarias. Que acham?


– Por mim, ótimo! E vou revelar algo que vai animá-lo, meu bom marujo: a Jéssica é casada – disse Mauro, sarcástico, referindo-se ao enlace da garota como um macabro palpite para a morte.


– Nesse caso, melhor ainda – asseverou Agenor, entendendo o toque funesto. – Achei sua companheira mais suculenta que a magricela da Mary. E uma boazuda como ela não poderia jamais cometer o erro fatal de contrair matrimônio!


Menandro e Mauro se entreolharam assustados. Longe de ser pelo fato de Agenor querer o massacre de Jéssica instigado por seu estado civil, pois quanto a isso um acordo tácito já havia sido firmado, o que chocou a dupla foi a impensável classificação da gordinha com o termo “boazuda”. Agenor parecia ter o perfil ideal para incorporar o papel de estripador.


Enquanto o ex-funcionário da poesia mexia com carinho no machado tingido de sangue, Mauro tomou a palavra.


– Já que é assim, não percamos mais tempo: vou chamar a Mary Flower e informá-la de sua saída do terror e seu ingresso no erótico. Faremos o que tem de ser feito, aqui mesmo no bar, que com o perdão da rima, veio bem a calhar.


– Bom – disse Menandro –, para abrir minha mente aos belos poemas que pretendo recitar, vou pegar uma caninha ali no balcão. Por sinal “balcão” rima com “coração”. Isso não te diz nada, Agenor?


– Muita coisa. Meu novo trabalho me aguarda – disse o marujo com um sorriso diabólico, ao tempo em que erguia o machado. – Nosso autor vai gostar de ver que adiantamos seu ofício, ainda que com pequena modificação nos papéis.


O intrínseco poder de sedução de Mauro o ajudou no contato com a bela Mary, que não resistiu e se entregou a ele sobre uma das mesas. Menandro, aproveitando o clima, desceu a lenha em algumas bloody marys misturadas a vodkas que nunca experimentara e concebeu rimas que seu inventor parecia ser incapaz de bolar. Com Jéssica Agenor teve mais trabalho. Convencer a carismática personagem do conto erótico de que teria de trocar alguns orgasmos por uma morte a machadadas foi um tanto complicado. Mas, susto maior levou Libório quando chegou ao seu escritório e viu seus homenzinhos misturados de forma aviltante num texto único, culminando no clichê que tanto combatia:


O Bar dos Homenzinhos transformara-se num grande congraçamento literário entre personagens de estilos diferentes, mas de espíritos idênticos.


Mauro e Mary Flower, deixando de lado a razão, se entrelaçaram vivendo uma insólita aventura, muito mais erótica do que aterrorizante.


Menandro, a quem o bar proporcionava grande prazer, mergulhava sem escafandro em versos que espontaneamente tirava ao beber.


Jéssica, por sua vez, cercada por Agenor e o indefectível machado sanguinário, implorava – não sem algum deboche – por sua vida:


– Não me mate, não mereço morrer! Não neste bar...

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