Marcia Szajnbok
Acordou sobressaltado pelo silêncio absoluto. Naquele instante, não sabia onde estava. Será que morri? Mas logo desfez-se da dúvida, os olhos pouco a pouco divisando a grande sombra a seu lado, o contorno retilíneo da janela filtrando para dentro do quarto raios da luz esbranquiçada do alvorecer. Há quanto tempo não ficava assim, estático no escuro e no silêncio, acompanhando as batidas do próprio coração? Anos a fio. Décadas, talvez. Noite após noite acordava incomodado pelo ronco daquela mulher. Aquela mulher. Estranho pensar nela assim: aquela mulher, sem função e sem nome. Quem era ela, afinal? Depois de tanto tempo compartilhando a mesma cama, respirando o mesmo ar viciado e malcheiroso do quarto, acostumado a todos os detalhes olfativos, sonoros e táteis da criatura a seu lado, certificava-se de que não sabia quem ela era. No que pensava quando os longos silêncios levavam seu olhar para o infinito? Com o que sonhava quando, no meio da madrugada, emitia sons de gozo e fragmentos de riso, há muito ausentes da vida desperta? O que sentia? O que desejaria? O silêncio do quarto amanhecendo fazia eco à ausência de respostas. Não sabia. Naquela cama antiga havia um buraco. Um buraco escuro e sem fundo. Uma fenda. Um abismo. Não a alcançava. Não a compreendia. Nem tampouco conseguia se fazer ouvir. Silêncio. Sempre o silêncio. Tateou no escuro a grande sombra gorda. Um arrepio varreu-lhe o corpo e o espírito. Gelada. Ela estava gelada. Gelada, silenciosa e imóvel. Levantou-se num pulo e o jato de vômito lavou a parede e o chão do quarto. Morta. Que raiva, meu deus, que ódio! Essa rameira morreu! Morreu sem responder, morreu engolindo o mistério de seus risos furtivos e olhares enviesados. Morreu! A filha de uma puta morreu! Sem saber o que fazer, deitou-se novamente, puxou a coberta até quase cobrir os próprios olhos e fingiu que dormia. Passou horas ali, no silêncio morto do quarto, entre o fingimento e o choro. Fingira tanto, ah como fingira... Fingira que não via, que não ligava, que ela não existia. Outras vezes fingia que ia embora. Devaneava. Via-se saindo, porta afora com a roupa do corpo e adeus! E agora, diante do adeus verdadeiro, fingia dormir, como se tudo continuasse igual, que o dia fosse mais um, como ontem e anteontem. Mas o choro não era fingimento. Nem se sabia ainda capaz de chorar... Mas, naquele início de dia recém clareado, chorou de verdade. Chorou de raiva, de tristeza, de solidão e saudades. Sobretudo de saudades. Sobretudo de saudades de si próprio.
Fragmentos é uma série de textos curtos, em geral de parágrafo único, que descrevem uma situação da realidade e seus ecos no mundo interno dos personagens, como se, num documentário da vida real, uma voz de fundo narrasse o que se passa no íntimo dos atores-autores, que aliás poderiam ser qualquer um de nós...
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