Joaquim Bispo
Assim que chegou a Tomar, João de Castilho procurou mestre Álvaro Rodrigues para conhecer o estado das obras que fora incumbido de finalizar, ainda antes de conhecer os alojamentos que lhe tinham sido atribuídos. Encarregou um dos homens da sua companha de tratar dessa parte logística. A viagem a cavalo fora cansativa, mas assim que avistou o volume do castelo foi tomado de grande curiosidade, dado o que já tinha ouvido dizer sobre o complexo religioso que crescia naquela envolvência militar. Foi encontrar mestre Álvaro a supervisionar os trabalhos no estaleiro da pedra, envolvido no ruído cadenciado dos martelos sobre os escopros. Este guiou-o pelos meandros da obra arquitectónica em execução:
– Era aqui que mestre Diogo de Arruda achava que devia ficar o portal da igreja, mas, como sabeis, ele foi chamado, há uns meses, para uma campanha de obras em Safim e outras praças em Marrocos, e vós fareis como entenderdes, ou as ordens que tiverdes – explicava mestre Álvaro, avançando depois até aos andaimes instalados na charola. – Vede as magníficas pinturas da companha de mestre Jorge Afonso – continuava o guia. – Esta parte está quase acabada; só falta alguma estatuária que está a ser talhada pelo vosso compatriota mestre Fernão Muñoz – não sei se conheceis.
João de Castilho passava os olhos pela enorme imaginária pintada e pelas inúmeras estátuas que polvilhavam o antigo oratório profusamente decorado, mas o seu assombro vinha-lhe da inusitada planta da capela-mor.
– Que extraordinário desenho, mas é anterior a mestre Diogo, não?
– Sim, esta parte foi construída pelos primitivos cavaleiros Templários, há mais de três séculos, inspirando-se no presumível templo de Salomão, que alguns viram em Jerusalém. Então, o templo era só este espaço poligonal de dezasseis lados, sustentado por estas oito colunas centrais. Entretanto, o espólio dos Templários passou para a ordem de Cristo de que é Mestre o nosso senhor D. Manuel. Mestre Diogo foi incumbido de o rasgar a Ocidente para acrescentar uma nave, como vedes, e esta parte é agora “apenas” a abside.
A seguir, visitaram a nova sacristia de planta quadrada dupla, que João de Castilho devia abobadar. Mestre Álvaro deixou a maior surpresa para o fim. Quando se postaram frente à janela da sacristia, no local onde viria a ser implantado o claustro de santa Bárbara, o novo arquitecto parou um momento, depois sentou-se numa das pedras da obra e quedou-se a contemplar e a tentar compreender os inúmeros ornamentos que a envolviam num emaranhado pétreo.
– Que dizeis? – saboreava o cicerone.
Mestre João nada dizia.
– Esta é a parte em que mestre Diogo mais se transcendeu – continuou Álvaro Rodrigues. – Todos estes motivos marítimos e vegetalistas são de tais criatividade e beleza que, acredito, farão que se fale por muitos anos do seu arquitecto e do rei que os encomendou.
– Entendo todas estas cruzes de Cristo – disse finalmente o novo arquitecto – afinal este é um convento da Ordem, mas por que todas aquelas esferas armilares?
– Esqueço-me que estais em Portugal há pouco tempo – reflectiu o mestre que tinha ficado a tomar conta das obras até à chegada do novo dirigente. – A esfera enfaixada pelos círculos principais é um símbolo geográfico da bola do mundo e um dos emblemas do rei. Esse e o escudo real são reproduzidos exaustivamente em todas as obras de arte, quer de cantaria, pintura, iluminura ou mesmo estatuária. Os Portugueses andam pelas sete partidas do mundo, de tal jeito e proveito que D. Manuel se intitula “Pela graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'aquém e d'além-mar em África, senhor da Guiné e da conquista da navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. As esferas estão lá para lembrar, em imagem, esse estatuto de rei do mundo.
– Bem, Espanha começa a avançar por toda a América – racionalizava João.
– E Portugal, pelo Brasil, essa fatia tão grande que ainda não se lhe viu o fim. Há quase vinte anos, em Tordesilhas, D. João II soube negociar. Mas, a riqueza está a Oriente. Quase que chega aqui o cheiro da pimenta. D. Manuel está exultante. E rico. Por isso lança tantas obras. Chamam-lhe o venturoso – tudo lhe corre bem. Há duas décadas não suspeitava que pudesse vir a ser rei – era o nono na linha de sucessão. Caprichosamente, morreram sete desses candidatos. D. Manuel é aclamado rei, sem esperar. No início do seu reinado, é descoberta a passagem a sul para a Índia. E o Brasil. Sente-se predestinado. Vê no próprio nome – Emanuel, que em hebraico significa Deus connosco – uma indicação profética. A esfera já fazia parte da bandeira da família. Sphera Mundi tem sido transcrito em muitos documentos como Spera Mundi, isto é, a Esperança do Mundo. Quem sabe se não será ele o Messias que, unindo-se ao rei cristão da Etiópia – o Preste João – inverterá o progresso muçulmano no mundo, reconquistando Jerusalém e derrotando os Mamelucos do Egipto!
– Dizeis que há um esforço intencional de distorcer alguns símbolos de modo a servirem um determinado interesse real?
– O que tem sido ventura para D. Manuel também tem aspectos problemáticos. O certo é que a nobreza habituou-se a vê-lo como “apenas” o Duque de Beja, e não como El-rei. D. Manuel precisa de algumas ajudas de legitimação, por isso alguma desta retórica imagética, que vale mais que muitas proclamações. Toda a obra de aparato é um manifesto da grandiosidade do rei e do estado. Se, além disso, o rei for mostrado em figura, ou em símbolo, em circunstâncias nobilitantes, maior grandeza adquire aos olhos dos súbditos e dos outros soberanos. Ele ainda alimenta a esperança de vir a ser, também, rei das Espanhas. E, ouvi dizer que se prepara uma embaixada ao Papa que leva um elefante indiano, dois leopardos e outros animais exóticos.
– Noto que toda a ornamentação vegetalista como que nasce de robustas raízes que saem das costas de um homem ali na base do pano de parede…
– O velho é Jessé – o pai mítico do rei David – disse-me mestre Diogo. Segundo S. Mateus, essa genealogia desemboca em Cristo, após vinte e oito gerações. Aqui, vê-se que do seu dorso nascem vergônteas que após várias circunvoluções desabrocham em esferas armilares, escudos reais e cruzes de Cristo. Não se pode ser mais incisivo na afirmação de predestinação, ainda por cima apoiada na Bíblia.
– Realmente!
– D. Manuel tem também realçado e feito representar o milagre de Ourique em que o nosso rei fundador teve uma visão da cruz de Cristo, onde se lia Com este signo vencerás – o mesmo que viu Constantino, o imperador romano que legalizou o Cristianismo. Liga-se, assim, o rei fundador da nação portuguesa, com o imperador “fundador” do cristianismo, na pessoa de Emanuel das profecias, que é a cabeça da ordem de Cristo, Cristo que virá a ser o senhor do mundo. Ele pretende ser visto como a junção do poder espiritual e do poder temporal, uma sobreposição de César e Salomão. E Esperança do Mundo. Vários pintores o têm inserido em cenas religiosas, como a Adoração dos Magos, sendo El-rei representado como um dos reis magos vindos do Oriente. E, na verdade, ele é um importante rei, cujo poder assenta, antes de mais, no Oriente.
João de Castilho e Álvaro Rodrigues, mestres arquitectos, continuaram a conversar sobre a singular figura do rei a quem serviam, e sobre as extraordinárias referências cruzadas que o identificavam. Não era difícil imaginá-lo com uma aura de Messias. Todas estas informações eram muito inspiradoras para o novo arquitecto, gerando ideias de exaltação arquitectónica. Se D. Manuel queria ser o bastião da cristandade e o seu modelo, poria o seu engenho ao serviço dessa aspiração para fazer deste convento um digno templo de Salomão no Ocidente!
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