Léo Borges
Minha sogra quer porque quer me fazer acreditar no diabo. Ela diz que o diabo existe e que precisamos acreditar nele e em suas maldades. Mais do que isso, ela também quer me fazer crer no inferno, de preferência o bíblico, já que eu, como policial, penso que o verdadeiro inferno seja a prisão. Com empedernida fé, ela não admite que eu não creia no reverso de Deus (e nem em seu habitat), o que, desta maneira, comprometeria a utilidade Deste. Afinal, como Deus poderia existir se não houvesse o Seu oposto?
Um amigo concordou no que se refere à existência do inferno factual. Ao saber da característica de firme crença em figuras bíblicas por parte da mãe de minha esposa ele asseverou que qualidades como “sogra” e “ortodoxia religiosa” não poderiam – de forma alguma – coexistir em uma mesma pessoa. Caso contrário, isso seria, necessariamente, o inferno. Trata-se, claro, de um bem-humorado exagero, até porque, ainda que minha sogra evidencie seus dogmas cristãos, o sadio bom senso prevalece e nosso convívio não é afetado por nada além de subsídios que, eventualmente, ela me propicia como ponto introdutório a crônicas vadias.
E servindo-me desses subsídios, lembrei-me do ocorrido numa certa meia-noite de um certo sábado. Estava esboçando um artigo no computador quando recebi a chamada no celular para cuidar de um detento que havia caído no banheiro da cela. Eu era o agente responsável pelo que viesse a ocorrer naquela madrugada e, por isso, fui encarregado de levá-lo, junto com outro colega acionado, para o prontossocorro. O sujeito parecia ter sofrido uma luxação na clavícula e não conseguia mexer um dos braços. No trajeto, o discurso de sempre: que os políticos também roubam e não estão presos; que não merecia punição tão rigorosa, pois não matou e nem estuprou; que o que fez foi apenas para não deixar a família passar fome. Tudo entremeado pelos tradicionais ruídos de sirene e gemidos.
Até então eu nunca havia estado no São Lucas, hospital público de Vitória. Ao entrarmos, deparei-me com o local de sofrimento máximo de que minha sogra tanto falava. Eram dezenas de pessoas – muitas deitadas em macas e outras, menos afortunadas, em colchonetes espalhados pelo chão – murmurando dores lancinantes. Algumas não tinham força para gemer e apenas se retorciam, mas todas possuíam semblantes que oscilavam entre angústia e desespero. Atropelados, baleados, esfaqueados, queimados, mutilados, drogados, parentes aflitos, amigos tensos, médicos atordoados. Era um cenário desconcertante. E o ombro do nosso preso transformou-se em um problema menor. O vigilante comentou que todo dia era mais ou menos aquilo, mas que no fim-de-semana o panorama se agravava. Data em que as pessoas saem, se embebedam, brigam, dirigem alcoolizadas, e, por fim, transformam o lugar de frios azulejos brancos em algum tipo de inferno.
Após a análise da radiografia, que demorou quase uma hora para ficar pronta, um dos médicos recomendou imobilização da clavícula, que apresentava discreta fissura. O problema, a partir daí, começou com a ausência do gesseiro. Mantivemos prontidão na porta da sala de gesso, onde algumas outras pessoas também o esperavam.
O diapasão lamuriento era a principal fonte sonora do lugar, porém, era vencido constantemente por gritos desconexos e esporádicos vindos da ala da psiquiatria. Percebi que aquele setor possuía uma peculiaridade que fugia à lógica. Apesar de poucos, os pacientes de lá não mostravam tristeza pelo mal que os acometia, mas um nervosismo agudo, uma loucura que não compactuava com o mórbido padrão passivo de todos. Eles não aceitavam estar no inferno sem alguma resistência.
– Vamos embora, Valtinho. Vamos embora daqui – passou falando alto um rapaz dos seus vinte e poucos anos, se evadindo da sala do psiquiatra, que, assim como o gesseiro, também estava desaparecido. Sua voz estava tão perdida quanto seu olhar.
O jovem, magro, olhos fundos, cabelo desgrenhado, trajava camisa branca surrada, calça jeans e chinelo. Possuía pequena barbicha a qual coçava repetida e nervosamente. Viu-se que Valtinho era a pessoa que o acompanhava e que tentava limitar seus atos. Mantinha um sorriso de constrangimento, como se quisesse dizer “ele está com problemas mentais, desculpem-no”. O rapaz não sabia onde estava e nem que, provavelmente, iria ficar internado. Liberto das mãos de Valtinho, voltava a andar de um ponto ao outro do extenso corredor ponderando ora sozinho, ora com o acompanhante.
– Tá trancado lá, Valtinho! Não tá aberto não!
Algumas pessoas procuravam se esconder como se ele representasse um perigo real, como se a qualquer momento ele fosse deflagrar uma guerra contra tudo a sua volta.
– Piranha! Piranha! – gritou para algum ente imaginário. Pôs as mãos na cabeça e se sentou. De quem estaria falando? Certamente não se referia a uma garota com uma minissaia rota que perambulava entre nós com a boca inchada e os olhos roxos, já que ele enxergava as pessoas com homogênea singularidade. Acredito que tenha sido para sua consciência mesmo, que aos poucos se vendia, aceitando que não poderia fugir daquele circo dos horrores. Valtinho via que preso à irresponsabilidade de alguém o jovem estava e que preso ficaria, refém que era da omissão da rede pública hospitalar. Todos, doentes ou não, eram detentores da mesma impotência daquele condutor, que procurava apenas cumprir – sem vexame – seu único objetivo dentro daquele asfixiante lugar: acalmar o subversivo jovem.
Como a situação ganhava contornos apocalípticos, fez-se um movimento para que algum sedativo fosse arrumado às pressas. Sem aviso, o protagonista da noite se levantou e iniciou outra vertiginosa incursão pelo corredor, cruzando as macas com desprezo quase agressivo.
– Eu não gosto de ninguém da América do Sul! – bradou.
Aquela frase me intrigou muito. Sem um raciocínio equilibrado, o que o levaria a decretar raiva a todos os habitantes de um imenso continente? Bom, todos ali éramos da América do Sul, crescemos na América do Sul e vivíamos na América do Sul. Mas em sua ótica não havia mais diferença entre o preso e o policial, o médico e o paciente, a enfermeira e a puta, o maluco e o são, afinal, todos eram sul-americanos e, portanto, pertencentes à sua lista de odiados. Com os gritos, um homem literalmente amarrado numa das macas começou a se remexer, contraindo os músculos e comprimindo os olhos, parecendo querer nos mostrar os reais efeitos da cocaína. Toda sua triste performance, entretanto, não o livrava de ser também uma persona non grata.
– Eu não gosto de ninguém da América do Sul! – repetiu com olhar sem rumo.
Conseguia passar medo com o tom de voz estridente, fazendo com que um ou outro procurasse se espremer atrás de nós, acreditando que armas pudessem confortá-los diante daquela loucura ameaçadora. Era curioso, pois, por mais desvairada que fosse a declaração, ao ser feita aos berros ela se revestia de uma sinceridade visceral. E exteriorizada daquela forma, por aquele emissor e naquele ambiente, gerava grande pavor.
Eu tentava imaginar: estaria ele realmente indignado com a miséria boliviana? A corrupção paraguaia? A insensatez venezuelana? A indiferença chilena? A soberba argentina? A guerrilha colombiana? O opróbrio brasileiro? Não se sabe. A única certeza era que a passividade dos pacientes, dos familiares, dos médicos e dos policiais não fora abalada. Mesmo diante de tão incisiva afirmação, continuamos como os inertes espectadores que éramos, já que ninguém demonstrava sentir o menor dos ódios contra o descaso estatal.
O retrato da saúde sucateada era emblemático e, por isso, palavras ensandecidas como aquelas serviam como um resumo geral, uma síntese consistente do melancólico cenário institucional latino-americano. O sistema, sem um culpado visível, mostrava a consequência de sua sujeira e de seu descompromisso. Mas alguém havia se rebelado. Um paciente da ala psiquiátrica decretou que não gostava de ninguém da América do Sul – o inferno do populismo e da demagogia – e isso incomodava.
Essas palavras devem ter mexido de forma definitiva com os brios patrióticos de alguns enfermeiros que, com alguma truculência, enfim, o sedaram. Sem mais alvoroço, o jovem caiu calado, com o corpo torto num banco manchado de mercúrio. Engessamos o preso e fomos embora. O psiquiatra, pelo que ouvi, ainda levaria mais algumas horas para chegar.
Um amigo concordou no que se refere à existência do inferno factual. Ao saber da característica de firme crença em figuras bíblicas por parte da mãe de minha esposa ele asseverou que qualidades como “sogra” e “ortodoxia religiosa” não poderiam – de forma alguma – coexistir em uma mesma pessoa. Caso contrário, isso seria, necessariamente, o inferno. Trata-se, claro, de um bem-humorado exagero, até porque, ainda que minha sogra evidencie seus dogmas cristãos, o sadio bom senso prevalece e nosso convívio não é afetado por nada além de subsídios que, eventualmente, ela me propicia como ponto introdutório a crônicas vadias.
E servindo-me desses subsídios, lembrei-me do ocorrido numa certa meia-noite de um certo sábado. Estava esboçando um artigo no computador quando recebi a chamada no celular para cuidar de um detento que havia caído no banheiro da cela. Eu era o agente responsável pelo que viesse a ocorrer naquela madrugada e, por isso, fui encarregado de levá-lo, junto com outro colega acionado, para o prontossocorro. O sujeito parecia ter sofrido uma luxação na clavícula e não conseguia mexer um dos braços. No trajeto, o discurso de sempre: que os políticos também roubam e não estão presos; que não merecia punição tão rigorosa, pois não matou e nem estuprou; que o que fez foi apenas para não deixar a família passar fome. Tudo entremeado pelos tradicionais ruídos de sirene e gemidos.
Até então eu nunca havia estado no São Lucas, hospital público de Vitória. Ao entrarmos, deparei-me com o local de sofrimento máximo de que minha sogra tanto falava. Eram dezenas de pessoas – muitas deitadas em macas e outras, menos afortunadas, em colchonetes espalhados pelo chão – murmurando dores lancinantes. Algumas não tinham força para gemer e apenas se retorciam, mas todas possuíam semblantes que oscilavam entre angústia e desespero. Atropelados, baleados, esfaqueados, queimados, mutilados, drogados, parentes aflitos, amigos tensos, médicos atordoados. Era um cenário desconcertante. E o ombro do nosso preso transformou-se em um problema menor. O vigilante comentou que todo dia era mais ou menos aquilo, mas que no fim-de-semana o panorama se agravava. Data em que as pessoas saem, se embebedam, brigam, dirigem alcoolizadas, e, por fim, transformam o lugar de frios azulejos brancos em algum tipo de inferno.
Após a análise da radiografia, que demorou quase uma hora para ficar pronta, um dos médicos recomendou imobilização da clavícula, que apresentava discreta fissura. O problema, a partir daí, começou com a ausência do gesseiro. Mantivemos prontidão na porta da sala de gesso, onde algumas outras pessoas também o esperavam.
O diapasão lamuriento era a principal fonte sonora do lugar, porém, era vencido constantemente por gritos desconexos e esporádicos vindos da ala da psiquiatria. Percebi que aquele setor possuía uma peculiaridade que fugia à lógica. Apesar de poucos, os pacientes de lá não mostravam tristeza pelo mal que os acometia, mas um nervosismo agudo, uma loucura que não compactuava com o mórbido padrão passivo de todos. Eles não aceitavam estar no inferno sem alguma resistência.
– Vamos embora, Valtinho. Vamos embora daqui – passou falando alto um rapaz dos seus vinte e poucos anos, se evadindo da sala do psiquiatra, que, assim como o gesseiro, também estava desaparecido. Sua voz estava tão perdida quanto seu olhar.
O jovem, magro, olhos fundos, cabelo desgrenhado, trajava camisa branca surrada, calça jeans e chinelo. Possuía pequena barbicha a qual coçava repetida e nervosamente. Viu-se que Valtinho era a pessoa que o acompanhava e que tentava limitar seus atos. Mantinha um sorriso de constrangimento, como se quisesse dizer “ele está com problemas mentais, desculpem-no”. O rapaz não sabia onde estava e nem que, provavelmente, iria ficar internado. Liberto das mãos de Valtinho, voltava a andar de um ponto ao outro do extenso corredor ponderando ora sozinho, ora com o acompanhante.
– Tá trancado lá, Valtinho! Não tá aberto não!
Algumas pessoas procuravam se esconder como se ele representasse um perigo real, como se a qualquer momento ele fosse deflagrar uma guerra contra tudo a sua volta.
– Piranha! Piranha! – gritou para algum ente imaginário. Pôs as mãos na cabeça e se sentou. De quem estaria falando? Certamente não se referia a uma garota com uma minissaia rota que perambulava entre nós com a boca inchada e os olhos roxos, já que ele enxergava as pessoas com homogênea singularidade. Acredito que tenha sido para sua consciência mesmo, que aos poucos se vendia, aceitando que não poderia fugir daquele circo dos horrores. Valtinho via que preso à irresponsabilidade de alguém o jovem estava e que preso ficaria, refém que era da omissão da rede pública hospitalar. Todos, doentes ou não, eram detentores da mesma impotência daquele condutor, que procurava apenas cumprir – sem vexame – seu único objetivo dentro daquele asfixiante lugar: acalmar o subversivo jovem.
Como a situação ganhava contornos apocalípticos, fez-se um movimento para que algum sedativo fosse arrumado às pressas. Sem aviso, o protagonista da noite se levantou e iniciou outra vertiginosa incursão pelo corredor, cruzando as macas com desprezo quase agressivo.
– Eu não gosto de ninguém da América do Sul! – bradou.
Aquela frase me intrigou muito. Sem um raciocínio equilibrado, o que o levaria a decretar raiva a todos os habitantes de um imenso continente? Bom, todos ali éramos da América do Sul, crescemos na América do Sul e vivíamos na América do Sul. Mas em sua ótica não havia mais diferença entre o preso e o policial, o médico e o paciente, a enfermeira e a puta, o maluco e o são, afinal, todos eram sul-americanos e, portanto, pertencentes à sua lista de odiados. Com os gritos, um homem literalmente amarrado numa das macas começou a se remexer, contraindo os músculos e comprimindo os olhos, parecendo querer nos mostrar os reais efeitos da cocaína. Toda sua triste performance, entretanto, não o livrava de ser também uma persona non grata.
– Eu não gosto de ninguém da América do Sul! – repetiu com olhar sem rumo.
Conseguia passar medo com o tom de voz estridente, fazendo com que um ou outro procurasse se espremer atrás de nós, acreditando que armas pudessem confortá-los diante daquela loucura ameaçadora. Era curioso, pois, por mais desvairada que fosse a declaração, ao ser feita aos berros ela se revestia de uma sinceridade visceral. E exteriorizada daquela forma, por aquele emissor e naquele ambiente, gerava grande pavor.
Eu tentava imaginar: estaria ele realmente indignado com a miséria boliviana? A corrupção paraguaia? A insensatez venezuelana? A indiferença chilena? A soberba argentina? A guerrilha colombiana? O opróbrio brasileiro? Não se sabe. A única certeza era que a passividade dos pacientes, dos familiares, dos médicos e dos policiais não fora abalada. Mesmo diante de tão incisiva afirmação, continuamos como os inertes espectadores que éramos, já que ninguém demonstrava sentir o menor dos ódios contra o descaso estatal.
O retrato da saúde sucateada era emblemático e, por isso, palavras ensandecidas como aquelas serviam como um resumo geral, uma síntese consistente do melancólico cenário institucional latino-americano. O sistema, sem um culpado visível, mostrava a consequência de sua sujeira e de seu descompromisso. Mas alguém havia se rebelado. Um paciente da ala psiquiátrica decretou que não gostava de ninguém da América do Sul – o inferno do populismo e da demagogia – e isso incomodava.
Essas palavras devem ter mexido de forma definitiva com os brios patrióticos de alguns enfermeiros que, com alguma truculência, enfim, o sedaram. Sem mais alvoroço, o jovem caiu calado, com o corpo torto num banco manchado de mercúrio. Engessamos o preso e fomos embora. O psiquiatra, pelo que ouvi, ainda levaria mais algumas horas para chegar.
0 comentários:
Postar um comentário