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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Duetos Assassinos- Giselle Sato

Ela


Gosto de jogos, de riscos e rasgos. Tragos e traços em finais imprevisíveis.
Ser musa é o preço de viver através da eternidade.
Gostaria que houvesse um toque de poesia e requinte, uma pequena alusão ao belo que compõe o quadro imaginário.
Contudo, estou disposta a barganhar meus pequeninos luxos .
Imaginei uma cena mas bem sei o quanto gostas do grotesco, horrores que somente você consegue imaginar... E que te delicia não tanto quanto o calor do meu seio em tuas mãos, manchadas de dores e agonia.
Nascemos no mesmo dia, separados por minutos, em um parto maldito de uma carne morta. Desde sempre amaldiçoados, fomos separados, temidos e condenados. Você me trouxe de volta, e atravessamos o mundo dos vivos deixando um rastro de trevas.


Ele



Deitar contigo à luz da lua
Sob a lona que depois servirá de mortalha
Contando histórias, cantando, planejando

Transporemos essa muralha
Nosso brinquedo estará esperando
Primeira honra será sua. Sempre.

Alisarei os seus seios suavemente
Com uma mão, na outra o bisturi
Incisão inicial sob o pescoço frio

Minha mão no seu sexo, eu já sinto aqui
Brincando na umidade, entrando sem esforço
Lâmina deslizando lentamente

Pressiono-te contra mim, estou duro
Sua mão sobre a minha, no cabo da faca
Beijamo-nos enquanto o sangue jorra

Você desfaz meu cinto, meu pau como estaca
Penetra violento, como procurando desforra
Por algum mal, ou prejuízo prematuro


Animais no cio, e a vida sob improvisada cabana
Vai-se embora, atravessa para o além
Éramos três, somos agora um par

Gozamos, nos sentindo bem
Amamos, matamos, e voltaremos a amar
E a matar. Pois o sangue nos chama.

Ela


Olhos febris refletem medo e terror, perdem a inocência e odeiam.
O grito suspenso, que jamais será ouvido, morre no murmúrio da mulher encolhida e trêmula. O homem tenta proteger a amada, você não permite e mostra sua força. Ele cai muitas vezes e eu peço que não o mate. Ainda.
Abraço a pobre moça e aliso os cabelos em cachos perfeitos. Ela é bonita e jovem demais, percebo seu olhar e decido cortar cada fio. A tesoura vai e volta enquanto as mechas caem... Caem... Formando montinhos.
Pequenas gotículas de sangue escorrem, ela geme sob as cordas apertadas. A boneca de trapos levanta os olhos azuis e me encara com raiva. Sou a ultima imagem, antes que a lamina destrua a cor.
E assim seguimos, alguns nos chamam de monstros, outros de loucos e desalmados. Mas o que importa? Nossa essência é assim, mesclados em trevas, dores, agonia... Seguimos.


A história de Ana e Léo


Ana nasceu primeiro, um bebê forte e rosado. O vagido soou pelo casarão e reza a lenda que os, lobos na floresta, uivaram em uníssono. Meia noite e dois minutos após, Leonardo foi retirado a fórceps, o que lhe valeu a marca odiosa e disforme.

Não houve alegria, o luto fechado foi declarado ainda no leito empapado de sangue. Enquanto as empregadas corriam, providenciando calor e alimento para os pequeninos, o restante da família velava a morta. Não houve funeral aberto, apenas a mãe acompanhou a única filha à morada derradeira. Muitos atribuíram ao fato da moça ter aparecido grávida, o que levou a família a discrição e afastamento.

Nove anos depois, os gêmeos passeavam no pátio, havia sol e a tarde morna prometia calmaria. A avó materna assumiu os meninos e amaldiçoou cada momento após o ato precipitado. Calados e unidos, Ana e Léo viviam em um mundo à parte e não admitiam qualquer interferência. A velha senhora tentou de todas as formas criar algum vínculo com as crianças. Completamente ignorada, aos poucos desistiu e acostumou-se aos estranhos netos.

Ana falava e tomava todas as decisões, Léo seguia seus passos como uma sombra, silencioso e soturno. O frontal deformado, mal oculto pelos cabelos escuros, dava-lhe um aspecto maldoso e repugnante. Se uma criança poderia ser chamada de sebenta, assim era Léo... Sempre sujo e amarrotado, escondendo-se, esgueirando-se, espreitando e surgindo do nada. Possuía um odor característico, passava longo tempo nos pântanos e o lodo impregnou sua pele de tal forma, que era impossível não perceber sua chegada.

Ana, ao contrário, era de uma beleza instigante e quase hipnótica. Enormes olhos negros, contrastando com a pele claríssima e um sorriso permanente. A menina adorava fitas azuis e enfeites nos vestidos leves e claros. Vivia cercada de mimos e apenas a avó era reticente aos seus encantos. Desconfiava do contraste em que os gêmeos viviam, não gostava da risada aguda da neta.

No entanto, a velha senhora nunca contrariava ou impunha a disciplina necessária. Sentada na cadeira de espaldar alto, toda de negro em luto fechado pelas perdas sentidas, a idosa apenas observava. Em complacente e arrastada existência, passava os dias como se não fizesse parte de nada. Os empregados caminhavam pelo casarão na ponta dos pés, falavam baixinho, com medo de alguma ameaça invisível. Principalmente, todos tinham verdadeiro pavor da antiga cabana que as crianças haviam transformado em local de brincar.

Afastada da casa e isolada pela floresta, os meninos passavam todo o tempo livre na construção rústica. Mal terminavam as aulas, buscavam o refúgio e por lá ficavam o resto do dia. Com o tempo, Léo passou a dormir e fazer as refeições no local e quase não era visto na casa principal. A avó entendia o fascínio das crianças pelo brejo, local repleto de animais pestilentos e evitado por todos na região. Há tempos havia passado pelo mesmo problema com a mãe dos gêmeos. Se alguém atento prestasse atenção, teria notado o desaparecimento da primeira menina, quando os gêmeos completaram dez anos de idade. E com certeza, faria uma conexão com a data e outras vítimas. Infelizmente, não o fizeram... O tempo passou rápido, e todos os anos... Anjos partiam para cirandas eternas.


Crianças no jardim do Éden



''Amorais são pessoas que desconhecem as normas, neste caso, são culpados ou inocentes?''


Assistir Ana movimentando-se pelas ruas, os longos cabelos balançando ao sabor do vento, passos precisos e cadenciados... Era quase divino. Como se uma aura translúcida envolvesse a moça em mágica luminosidade. E Ana sabia disso, sempre sorrindo e com um leve movimento de baixar a cabeça, seguia seu caminho. Porte, atitude e afetuosidade, tornava cativos os maiores desafetos, cordeiros balindo atrás da pastora... Almas puras e crédulas.

Nesses momentos, quase ninguém percebia a presença do irmão gêmeo. Vigilante, seguindo de longe... Sempre. Quem o visse, virava a face, tamanho era o desleixo e feiúra. Cabeça de lua, cabeça de lesma e outras variantes, já não o perturbavam... Sabia dos apelidos, mas Ana havia dito que um dia, todos se arrependeriam. E Ana havia prometido nunca mentir para Léo, ela era o anjo que o protegia e amava.

Naquela noite, quase haviam brigado por causa do presente de aniversário. Cada ano a irmã ficava mais exigente e Léo não sabia dizer não. Eram meses de empenho, para que tudo saísse a contento:

- Esta noite, será a noite mais linda de todas. Dezoito anos e o inicio da nossa libertação. Teremos direito a herança, vamos viajar e conhecer muitos lugares. Ana abraçou o irmão e ele riu, escondendo o rosto nos cabelos da moça:

- Se você quiser, mas eu gosto de ficar aqui... É meu lugar. Eu e você não precisamos de outras pessoas.

- Não! Não fique preocupado, sempre estaremos juntos... Posso ver meu presente agora? Posso? Os olhos de Ana brilhavam.

- Venha comigo, mas não faça barulho. É uma surpresa.

Léo e Ana saíram de mãos dadas, atravessaram a ponte velha e tomaram a trilha da floresta. Com o tempo, a cabana da infância ficou pequena demais para as brincadeiras. Descobriram que os pais possuíam uma estância de inverno, esquecida e abandonada. Perfeita.

Aos poucos a trilha tornou-se mais fechada, Ana apertou a mão de Léo e sorriu. ‘’ Quase lá... Nosso cantinho perfeito ”... Léo beijou a mão pequenina e aspirou o perfume suave e doce. Mordiscou o pulso quase infantil, provocando um gritinho assustado, entrecortado de risadinhas nervosas.

Pararam em frente a grande porta de carvalho. Ana fechou os olhos, visivelmente excitada e inquieta. Ele sempre a guiava até o presente. Um ritual de amor e carinho que começava com um beijo doce e o velho sussurro: - Te amo, pequenina, feliz aniversário.

Entraram e imediatamente perceberam que alguma coisa estava errada. Ana arregalou os olhos buscando o irmão, enquanto a foice desceu em único golpe. O grito perdeu-se no ar e a moça recuou, o pano da saia branca empapada de sangue vívido. Os olhos acostumaram-se com a escuridão e os vultos tomavam forma e nome.

A avó e o velho jardineiro estavam parados talvez decidindo o que fazer com ela... Ana tentou ganhar tempo enquanto buscava alguma saída: - Ele me obrigou, eu não queria... Nunca quis. -Gritou acuada.

- Cínica. Mentirosa! Ele foi apenas um brinquedo nas suas mãos. Léo era um menino, apenas tinha a força. Tornou-se um monstro, matou demais... Para te agradar. Vocês me enojam, sempre grudados... Finalmente acabou!

- Não! Eu amava meu irmão, sempre o protegi de todos. Ele era inocente! Onde está a menina? – Ana sabia que Léo havia trazido uma de suas melhores amigas.

- Não se preocupe, já demos um jeito! Você enlouqueceu? Raptar a filha do prefeito foi muita ousadia. Claro que seria o presente perfeito para sua maioridade. Um verdadeiro crime de gente grande! Vocês são dois tolos, brincando e deixando cair os farelos no chão.

Ana observava a avó de uma forma diferente, aquela não era a senhora medrosa e frágil de sempre. Muito pelo contrário, Dona Augusta envergava uma roupa de caça antiga e elegante. Nas mãos, a espingarda pesada do falecido marido, homem famoso na região pelos troféus que enfeitavam as paredes do casarão.

Pela primeira vez, notou a semelhança entre ambas e o porte altivo e impactante. Aquela mulher podia convencer qualquer um a fazer o que quisesse. O magnetismo incomodava Ana, sentiu-se enjoada com os olhos frios da velha senhora.

O jardineiro jogou gasolina por toda cabana, o corpo do irmão decapitado foi arrastado até o meio da sala. Para espanto de Ana, um segundo corpo juntou-se ao do irmão. Era o da amiga, igualmente disforme, em grotesca parceria:

- O que fizeram com ela? Não era para ser desta forma!

- Ela sabia demais, infelizmente. Agora Ana, vamos começar a verdadeira brincadeira. Vamos retomar um velho hábito e ninguém melhor que você para iniciar. Daremos meia hora para que tome uma boa dianteira, depois vamos caçar... Lógico que não vai perguntar quem é a caça! - A velha nunca pareceu tão feliz, os olhos brilhavam de puro ódio.

- Podemos ficar juntas, não quero morrer deste jeito. Feito um animal. Somos parentes! Não entendo! - A expressão de pesar, o olhar perdido, eram perfeitos... Puros e convincentes.

- Claro que entende! Não há lugar, somos iguais e eu não vou arriscar. Anos e anos, cobrindo as bobagens que vocês dois faziam. Cansei. Além do mais, você há muito não sabe o que é ser humana. Um lindo e puro animal, correndo pela floresta, eis sua mais perfeita descrição. Um animal no cio, seguida por todas as criaturas que habitam aquelas paragens. Seres bestiais como você.

Ana entendeu que não podia perder mais tempo. Rapidamente refez suas rotas de fuga e deixou a cabana. Os irmãos contavam com o imprevisto e estavam preparados.

Havia a caverna com suprimentos alguns quilômetros rio acima. Calculou que podia chegar em dois dias de caminhada puxada. Correndo pelas trilhas, que apenas ela e o irmão conheciam, ainda tinha esperanças de escapar e quem sabe um dia... Retornar e matar a bruxa velha lentamente. Vingar o irmão da pior maneira possível, era seu maior desejo.

Sentiu saudades de Léo, a sombra protetora e amada. De agora em diante, sabia que estaria sozinha. Com todas as forças, Ana desejou Léo ao seu lado, nem que fosse uma única vez.

O céu fechou-se em cinza e a tempestade cobriu as montanhas. Em um segundo, fez-se noite e a mata silenciou. Uma névoa espessa vinha descendo, formando uma cortina impossível de transpor.

Um farfalhar de galhos sendo quebrados alertou que era seguida de perto. Ana apertou o passo, imaginando a avó chegando sorrateira... Atirando sem dó nem piedade. Na verdade, duas palavras que nunca significaram nada para os irmãos. Ouvidas incontáveis vezes, em meio aos gritos de dor...

Ana sentiu um puxão nos cabelos e parou. O corpo tremeu com o sopro gelado, um cheiro conhecido fez com que abrisse um sorriso e fechasse os olhos: - Léo! - Falou baixinho, e sentiu a boca deslizando em seu pescoço. Mãos fortes abraçavam... Afagavam... Traziam alento. Deixou que a sensação tomasse conta... Entregou-se ao sonho, ou o que fosse... Estava segura e calma.

Ele

Sigo teu cheiro, que me entranha a alma
E todos meus sentidos buscam teu calor
Somos parte do todo, únicos herdeiros
E jamais nos afastaremos, porque somos um.



Ela

Sem corpo, espaço ou tempo
Sem nada além do desejo urgente
Sem forças que o impeçam de vir
Sem leis, conceitos ou preconceitos.


O fogo alto parecia rugir enquanto a cabana queimava, estalando e soltando fagulhas e fumaça. Dona Augusta entregou a arma ao jardineiro, sentou-se em um tronco e por algum tempo rezou pela alma do neto. O homem truculento e de idade avançada ainda era forte no trato com os animais. Trouxe os cavalos e ofereceu ajuda à patroa: - Vamos pegar a trilha do rio, a menina não deve estar muito longe... Alcançaremos sem problemas.

- Não. Não para esta velha aqui, quero apenas que ela saia e só volte depois da minha morte. Estou cansada, precisava corrigir esta história e agora é o suficiente. Vamos tocar adiante e deixar o mundo e os antigos ensinarem Ana. Nosso clã está espalhado e alerta. Sempre haverá um de nós... Sempre.

O empregado assentiu com um leve movimento, imediatamente os cavalos tomaram a marcha em direção à fazenda. Léo fora um erro e Ana era melhor que o esperado. Dona Augusta sempre soube que a linhagem ficaria com o mais forte dos gêmeos. Só não contava com a simbiótica ligação. Foi preciso esperar a idade certa e, neste meio tempo, os meninos deram muito trabalho. Ana manipulou toda a força, usou o irmão e transgrediu regras e tradições.
Agora a maldita ligação estava desfeita. Mas jamais teria certeza. Não enquanto a neta estivesse viva.



Participação especial: Pedro Faria

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