Léo Borges
Era feriado, mas ainda assim algumas lojas abriram para que os atrasados pudessem comprar seus presentes do Dia das Crianças. E eu, nessa luta de última hora, também buscava uma pequena lembrança para meu sobrinho quando, no meio da correria, passei pelo Bar do Setembrino e vi um vulto familiar. Quem era? Ele mesmo: Rildo, o paladino das contestações. O ilustre bonachão, que já chegou até mesmo a sentenciar que no mundo a única Paz possível é a garçonete Jacimeire – cujo sobrenome é Francisca da Paz –, estava lá, escarrapachado em sua cadeira cativa, observando a efervescência das ruas.
Tendo como cenário a procissão de gente com suas sacolas de brinquedos, ele aguardava algum incauto para uma prosa – ácida, como de praxe. Ao vê-lo, ofereci-me como companhia efêmera, já que a tarde caía e eu ainda não havia comprado o presente.
– Jacimeire – chamou a garçonete ao perceber minha aproximação –, traz outra gelada pro camarada aqui!
– Obrigado, Rildo, mas já estou de saída. Ainda tenho que comprar alguma coisa pro meu sobrinho. Só parei porque, como você sabe, não abro mão de algumas palavras com o nobre amigo.
– Fique tranqüilo. Ainda faltam quarenta minutos para o comércio fechar – disse com seu jeito despachado, limpando o visor do relógio verde e branco que trazia no pulso. – Você sabe qual é a coisa mais importante neste feriado de 12 de outubro?
– O que é?
– Foi o dia em que me aposentei – disse rindo. – Feriado e dia útil pra mim agora é tudo igual: um deleite só! Aliás, esse negócio de dizer que dia útil são só os dias de trabalho sempre me desagradou, porque insinua que sábado, domingo e feriado são inúteis por definição, o que é um absurdo. É justamente nesses dias que o ser humano mais mostra sua utilidade: brinca, escreve, lê, namora, joga uma sinuca, conversa com amigos no bar...
– É, mas, além disso, há outros fatos importantes nesse dia, não acha? – provoquei.
– Sim, claro. É a data de fundação do Coritiba Futebol Clube, por exemplo. Pelo menos para o meu vizinho paranaense, que é fanático por futebol, hoje é um grande dia! Aliás, esse relógio com o escudo do Coritiba, que vive parando, foi ele que me deu – comentou, mexendo num dos botõezinhos do aparelho.
– Bom, isso até pode ser – falei, concordando com a brincadeira –, mas, na verdade, as pessoas se ligam mais nas três datas, digamos, de maior expressão nacional: o feriado pelo Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, o Descobrimento das Américas e o Dia das Crianças.
Rildo abriu um sorriso malicioso, bebeu de um gole quase meio copo de cerveja e começou o discurso que colocava todos esses acontecimentos de 12 de outubro na berlinda.
– Você sabia que o Brasil é um país laico? Significa que não temos uma religião oficial. Logo, como é que o poder público cria um feriado tendo como base uma data que festeja um ícone cristão? Essa incoerência abre precedente e outras religiões se legitimam a pleitear toda a sorte de homenagens. Adeptos do satanismo, inclusive, poderiam requerer um feriado para eles, por que não? O Dia do Encontro com o Demônio, por exemplo. Ah, e os ateus também seriam contemplados com algo como O Dia Nacional da Não Crença em Deus. Diante dessa imprudência legislativa, isso me parece bastante plausível.
Desconfortado com o comentário, bem típico dele, dei uma tossida e falei:
– Há o Natal, um feriado de origem cristã que é mundialmente instituído.
– A origem pode até ser essa, mas pergunte a qualquer menino qual a lembrança que lhe chega à mente no dia 25 de dezembro? Algum fato relacionado ao cristianismo ou o famigerado Papai Noel da loja de videogames? Por outro lado, poderiam criar também uma série de feriados mundiais pelos nascimentos de Sidarta Gautama, de Allan Kardec, de Maomé, entre outros. Assim, para felicidade geral, os perniciosos “dias úteis” iriam quase sumir – disse, prendendo a gargalhada. – Sei que algumas datas religiosas movimentam o comércio, mas é um contrassenso e um desrespeito atrelar questões mercantis à fé.
– O feriado do dia 12 de outubro seria mais apropriado, então, se fosse por causa do Descobrimento das Américas?
– Na verdade, as Américas foram descobertas muitíssimo antes do dia 12 de outubro de 1492. O que hoje é propagado não passa de um eurocentrismo que até fica bonitinho em livros escolares, mas que não condiz com a realidade. Quando os europeus chegaram, já existia aqui uma população de milhões de ameríndios com seus costumes e línguas. Então, tal ‘descoberta’, incluindo aí a de Cabral oito anos depois, deveria ser compreendida como uma simples visita, inesperada como se vê, de um povo a outro, mas jamais como uma colonização e muito menos como uma conquista. No entanto, os galegos trataram os silvícolas como uma espécie de sub-raça, impondo credos e levando toneladas de madeiras e minérios em troca de bugigangas. Eu imagino como deve ter sido constrangedora a tal primeira missa dos lusitanos na Terra de Santa Cruz: uma sisuda solenidade cercada por uma multidão de índios pelados! – ria.
– Cuidado com o que diz. O seu Setembrino é português, hein... – alertei.
– Bom, nesse bar eu também sou explorado: olha o preço da cerveja! Mas esse delicioso bolinho de carne seca compensa... – disse, degustando o petisco. – Se o portuga resolver me catequizar, faço um escambo e levo a Jacimeire em troca do meu relógio do Coxa¹ – brincava, piscando tanto para o simpático seu Setembrino quanto para a solícita garçonete.
Mas, e o Dia das Crianças? Até este ele conseguiria colocar sob fogo cruzado?
– Datas com comemorações específicas, como Dia das Crianças, Dia dos Pais, Dia das Mães e Dia dos Namorados, realmente nasceram inocentes e bem intencionadas. Mas, aos poucos, foram ganhando um viés comercial e ficando sem alma, de modo que, infelizmente, dar presente se tornou mais importante do que estar presente. E isso tudo sem falar em anacronismos como o tal Dia do Índio. Nesse dia, as crianças da cidade se pintam e dançam. Mas ninguém lhes diz que, atualmente, índio de verdade é coisa raríssima. Os que não foram dizimados viraram uma espécie híbrida e agora vivem juridicamente como peles-vermelhas, mas, de fato, como autênticos caras-pálidas.
Para Rildo todos esses dias chamados “especiais” se transformaram em estratagemas peçonhentos para que pudéssemos sustentar o verniz social do politicamente correto e, de quebra, gastarmos nosso dinheiro com quinquilharias.
– Como artimanha para a obtenção de lucro isso já seria algo questionável, mas a coisa é ainda mais ardilosa: passaram a servir como uma resposta picareta e debochada às necessidades das pessoas. Amar e fazer algo de bom deveria ser um padrão diário, uma rotina, mas restringiram isso a datas hipócritas, como, por exemplo, o intragável Dia Mundial da Paz. Argh! – completou, apertando o nariz como se algo cheirasse mal. Realmente, para alguém que não crê na viabilidade da Paz, esse dia deveria mesmo soar como pilhéria.
O velho boêmio revelou que sempre presenteava os filhos com critérios diferentes daqueles determinados pela sociedade.
– Eu nunca obedeci a esses cronogramas. Mimava quando queria ou quando achava que mereciam. Quando chegava o Dia das Crianças, eu não presenteava. Nem no Natal. Me chamavam de sovina e até de pernóstico. Antes isso do que escravo dessa sórdida obrigação de se adequar ao supérfluo consumismo datado. E não tive problema com a criação de nenhum dos guris. Hoje meus netos têm tratamento semelhante e gostam.
É. Um diálogo com Rildo sempre mostra uma maneira insólita de se enxergar o mundo. Mas, na qualidade de integrante da tal “sociedade de consumo”, perguntei pelas horas, já que as lojas estavam fechando e meu sobrinho iria acabar ficando sem ganhar nada.
– Ih, amigo! Os ponteiros estão parados! Certamente já passou das seis e aqui ainda está marcando cinco e cinquenta... a culpa foi minha por te prender a papo tão utópico – falou mexendo no relógio. – Acho que você não vai mais encontrar nenhuma loja aberta.
– Tranqüilo. Dou um abraço nele como presente. Se você me fez enxergar que objetos nessa data não são tudo, acho que ele também pode entender.
– Leve para o seu sobrinho – disse Rildo tirando o relógio do pulso e me entregando. – É só trocar a bateria que volta a funcionar. Para ele se orgulhar, diga que o Coritiba foi campeão brasileiro de 1985. Só não sei se também foi no dia 12 de outubro.
¹ - Coxa no masculino e com letra maiúscula por se tratar da alcunha do time do Coritiba.
0 comentários:
Postar um comentário