– Não posso crer que nos perdemos de novo – disse Ygor, franzindo as sobrancelhas no intuito de suas feições parecerem tão sérias quanto a situação em que ele e Logan estavam.
– Sim, é o que parece. Esta localidade não se confunde com Melgraste, ainda que o gorjear dos rouxinóis muito se assemelhe.
– Quando foi a última vez que estiveste lá?
– Não me recordo. No penúltimo inverno, penso. Quando fui contratado para uma emboscada nos montes. O coitado caiu de um penhasco.
– Caiu ou derrubaste?
– Sabes que nenhum assassino de aluguel confessa seu método.
– Isso agora tanto faz. Importa agora que esqueceres as formas urbanas do lugarejo, o que muito nos atrasa – asseverou Ygor. – Bem, pelo menos ainda conservas a memória para o essencial, mesmo que com desfaçatez. Já a mim não podes acusar de negligenciar lembranças. Dei cabo de algumas pessoas na cidade para qual vamos, é bem verdade, mas lá se vai mais de uma década.
– Matar de graça definitivamente não me apetece. Ainda bem que a contratante em questão é a rainha de Melgraste. Embora pessoa de índole ruim, não é sovina.
– Concordo. Dizem que essa mulher é extremamente perversa, mas tem palavra. Chegou ao poder através de esquemas escusos, perfídias e, sim, muitas mortes. Algo parecido com aquela desvairada mulher de um guerreiro escocês.
– Macbeth? – perguntou Logan, lembrando do caso que se tornou um clássico.
– Acho que é esse mesmo. Contam que sua mulher era tão impregnada de ganância que enlouqueceu num cenário sanguinolento criado por ela própria. Não sem antes gerar uma tragédia sem precedentes na Escócia.
– Também ouvi essa história. Mas Lady Loffertie parece-me ainda mais cruel, além de leviana. Não à toa sua alcunha é "a Rainha do Inferno".
– Não participei em nenhuma das mortes encomendadas por Lady Loffertie – revelou Ygor –, mas soube de colegas que exterminaram figurais reais que facilitaram o acesso dela ao trono.
– Ora, Ygor, estás sentado ao lado de um que participou de algumas dessas mortes. Apesar de esquizofrênica, a Rainha do Inferno investe bem quando o assunto é massacre.
Lady Loffertie esperava a dupla ao lado da única capela periférica de Melgraste. Sentia-se mal perto de tantas imagens angelicais, mas melhor o incômodo passageiro do que não resolver o que verdadeiramente a afligia. Tapava o rosto com um xale e não trajava as vestes reais justamente para não levantar atenção para o encontro que marcaria o início do fim de sua fama.
O horário vencido fazia a mulher refletir sobre o possível erro de ter chamado aquela dupla. Sabia que eram efetivos no serviço, mas a logística sempre fora precária. Soube que Ygor fora ferido por um touro quando foi matar um fazendeiro. E Logan quase fora preso na última empreitada a mando real. O serviço na época era até bem simples: alguns golpes de estilete em Dorknson, então namorado da filha da rainha, um sujeito altamente prepotente e ambicioso. O matador profissional executou o trabalho, mas sujou-se tanto de sangue que o rastro possibilitou à polícia levantar suspeitas sobre a mentora. O néscio foi até a casa real receber a paga sem nem ao menos trocar as vestes. Subornos à parte, verificou-se que o rapaz fora morto em legítima defesa, o que dispensava procedimentos criminais de maior envergadura.
A rainha agora não pretendia matar mais ninguém. Na realidade, nunca pretendeu. Foram as circunstâncias, por vezes alheias a sua vontade, que a impeliram ao assassínio – ou ao mando. Acreditava ferrenhamente que não era criminosa e nem nunca fora na acepção do termo. O problema residia justamente nessa fama de rainha infernal, fama esta que se propagava ultrapassando as fronteiras de Melgraste, mas que não encontrava lastro, segundo seu entendimento.
Esta morte – a derradeira – mesmo dando azo à maldita fama, vislumbrava-se como o único remédio para pôr fim ao que de fato incomodava aquela mulher: a esquisita e odiosa reputação de assassina. Não queria mais os famigerados olhares de medo e desconfiança seguindo-a quando desfilava pelas ruas. Seu ar nobre era incompatível com o perfil de uma assassina.
“Matar a fama?”, era a pergunta que não saía da cabeça de Thebiane, sua empregada de maior confiança. “Será que minha rainha estaria tendo outra crise? Parecida com aquelas em que se torna incapaz de identificar o que é certo e o que não é?”. Thebiane sempre sentiu o ranço da morte na realeza, mas, nunca acreditou nas histórias que lhe contavam sobre matanças covardes por parte de seus empregadores. Sabia da existência da fama, apesar de refutá-la, até mesmo pela conveniência da manutenção do emprego – e da vida. Nunca, porém, a morte e a rainha entraram em tamanha interseção a ponto de uma estar perto de aniquilar a outra. Isso era loucura plena!
– Sim, Thebiane, quero, literalmente, acabar com este estigma que me persegue. Mortes e mortes. Muitos sucumbiram? Sim. Mas, sem tais mortes, tragédias maiores teriam ocorrido e você não estaria aqui empregada neste castelo, ouvindo meu lamento. Todas as autópsias rechaçaram as invencionices perversas dos ociosos. É tétrico ter de conviver com a imunda fama de genocida quando na verdade sou a mais benevolente das pessoas. Certo que desejei a morte de alguns, como o rei Komelaw. Mas seu fim se deu pela queda acidental em um despenhadeiro, longe da minha presença. Herdamos o reino, mas esses fatos não possuem nexo causal. Se algum dia possuí ímpeto mortal, este logo foi dissipado. Quero deixar minha inocência marcada na história e para isso preciso matar. Matar o que me destrói perante o povo: matar esse labéu!
A empregada achou muito estranha tal decisão, contratar matadores para liquidar um rótulo, um espectro que vivia visceralmente atrelado à rainha. Afinal, mortes por espada ou por veneno só ocorrem entre vivos, não entre estigmas. De qualquer modo, apoiava a decisão que, em todo caso, era soberana por essência.
– Ei-los! – exclamou a rainha ao avistá-los.
Logan foi o primeiro a apresentar desculpa pela demora:
– Perdoe-nos. Perdemo-nos no caminho.
– Penso que escolhi as pessoas erradas para resolver a problemática. Se não conseguem nem mesmo lembrar-se do caminho que conduz a Melgraste. Estão cada vez piores.
– Não pergunte se somos capazes. Passe-nos a missão.
– O que quero pode parecer estranho e de fato o é. Espero que façam e façam com rapidez. Estou cansada de carregar uma fama que não possuo em caráter legítimo. Quero minha aura de rainha generosa de volta, ou instituída, se pensarmos que ela nunca existiu. Que minha fama de matadora seja morta! Oitenta moedas de ouro e títulos de nobreza para os dois. Terei a prova quando mais ninguém intimidar meus passeios com ares de pavor ou de insulto latente.
Logan e Ygor entreolharam-se, espantados. Já haviam recebidos muitos pedidos, muitas encomendas macabras. Bispo pedindo para matar a madre, duque pedindo para matar a duquesa, pessoas de família abastada requisitando extermínios em geral. Mas, matar a fama?! Olharam para os parcos símbolos religiosos expostos na capela e se benzeram. Mas o prêmio era bom e o pagamento superou a falta de lucidez da proposta.
– Sim... iremos matar a fama de Lady Loffertie – Ygor falou e saiu puxando Logan.
– Quero o serviço completo em no máximo uma semana! – arvorou-se, gesticulando como se sua característica fosse mais relacionada à loucura do que à realeza.
Logan não tinha a menor ideia de como poderia começar o trabalho. Ygor menos ainda. Pensaram até que Lady Loffertie estivesse satirizando seu ofício. Mas ela parecia decidida e não voltou atrás, despedindo-se de ambos com um sorriso carregado de escuridão.
Nos primeiros dias cogitaram que para acabar com o estranho pedido, deveriam acabar com quem acolhia essa opinião. Como na localidade praticamente todos consideravam a rainha uma mulher vil, pensaram, de início, que teriam de promover uma carnificina. Mas não era isso o que Lady Loffertie queria. Era justamente o contrário: queria que todos a respeitassem por seu temperamento amistoso.
Acreditaram que todo aquele mistério era um código. A fama de uma pessoa, concluíram, é coisa muito próxima: é a sua alma, espírito que ganha forma e que se agiganta tomando proporções tais que eliminá-la se torna uma tarefa impossível. Mas para tão complexo intento a rainha, certamente, iria convocar matadores com maior capacidade de planejamento. Por isso, acreditaram que a tarefa seria fácil. Com a simplicidade com que desenvolviam sua labuta, enxergaram que este poderia ser, de verdade, o serviço mais simples para o qual já haviam sido contratados. Desta maneira concluíram que o estigma em questão deveria ser elemento representado por figura única e não a coletividade ou algo abstrato.
Ao analisarem o histórico de Lady Loffertie viram que se tratava de uma mulher solitária, pois o marido morrera antes mesmo de se tornar rei. Alguns disseram que foi picada de cobra, outros que fora a própria Rainha do Inferno que o asfixiara durante o sono. Certo é que Lady Loffertie era quem mandava em Melgraste e apenas uma pessoa era fiel e estava permanentemente ao seu lado: a empregada Thebiane. Seria ela, portanto, a chave para se desvendar o mistério.
Thebiane raramente saía do castelo, mas num determinado dia em que foi visitar sua tia Jividain, foi abordada pela dupla, que já a espreitava.
– Tu sabes! Vives com ela! Como podemos matar a fama de má de Lady Loffertie? Diga-nos e serás poupada da morte!
Thebiane assombrou-se como nunca antes na vida. O ranço de morte parecia perseguir não apenas sua patroa como ela própria. A rainha querer acabar com a fama de assassina era algo bom e justo, mas aquela coerção animalesca, certamente, não parecia a melhor maneira de trabalho de pessoas tão experientes quando o assunto era óbito. Com uma faca apontada para si, a empregada que sempre jurou fidelidade agora deveria dizer o impossível, o impensável.
– N-não sei... ela quer muito acabar com tudo isso, mas sou a pessoa menos indicada para prestar-lhes auxílio nessa busca!
– Anda! Diga logo se não quiseres morrer como todos os que cercam sua patroa!
Thebiane não pretendia ser infiel logo agora, quando havia de provar seu amor, quando era a única a desconsiderar o lado ruim de sua patroa. A empregada viu que uma resposta coerente deveria ser dada para escapar da morte na mãos dos chacais e, num lampejo, percebeu que se Lady Loffertie queria tanto acabar com sua fama, nada mais restava que sua existência fosse levada ao ocaso, como ocorrera com o rei Komelaw, que após a morte na colina viu sua reputação ser alterada, tendo, inclusive, praça inaugurada com seu nome.
– Não há como acabar com a fama de criminosa da Rainha a não ser acabando com a fonte – disse áspera e séria, e com um tom meio maldoso, a empregada.
– Como assim?
– Liquidando a própria rainha. Matando Lady Loffertie! – Thebiane revestiu-se com um purificador sentimento de salvação, tanto de sua pele quanto da fama de sua patroa. – Ao matarem Anne Loffertie, a Rainha do Inferno, esta morrerá da maneira com que sempre sonhou: amada pelo povo, com direito a estátuas e homenagens.
Logan e Ygor surpreenderam-se com tamanha inteligência e chatearam-se por não alcançarem essa resposta logo que a proposta foi feita. A Rainha do Inferno foi morta pela dupla e, como a filha desta já havia sido assassinada em circunstâncias não explicadas, Thebiane, a empregada, assumiu como nova titular da realeza. Mas o que importava é que a fama mortuária de Lady Loffertie mudou. De pessoa má e traiçoeira passou a ser a mais caridosa das rainhas póstumas.
3 comentários:
Léo é um dos melhores escritores da nova safra.Aguardemos a próxima pérola de nosso escritor.
Pois eu o acho mais um bom dum prolixo com nada a dizer.
Não apenas interessante como importante essa manifestação dos leitores. Obrigado pelos comentários!
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