Em certa noite da Alemanha do século XVIII, um promissor estudante de música analisava partituras clássicas. Durante as análises, ouviu um conhecido som de órgão. As notas belas, fortes, estalavam em sua mente e inundavam-lhe a alma. O jovem sentiu-se fortemente atraído pela melodia e quis conhecer sua origem. À medida em que se esgueirava pelas ruas vazias, mais era tragado pelo som. Sem exatamente se dar conta de como, estava dentro de um cemitério. O que lá encontrou, congelou-lhe o sangue nas veias.
Enquanto ouvia a “Tocata e Fuga em Ré Menor”, observava seu executor: roupas aos farrapos, peruca capenga e amarelada, dedos esqueléticos sobre as teclas do órgão. Era Johann Sebastian Bach. O estudante paralisou-se com a visão. Há tempos que o compositor havia morrido e fora enterrado naquele mesmo cemitério. Como podia estar ali na sua frente? Só saiu do transe quando o morto-vivo iniciou uma nova sonata, ainda mais bela e irresistível que a primeira, fazendo-o se aproximar. Ao lado do organista, deixava-se envolver pela composição que, por sinal, conhecia: era o último concerto para órgão de Bach, deixado inacabado por conta de sua morte. Abruptamente, o som foi interrompido, tirando o jovem de seu êxtase musical. Quando notou, de fato, quem lhe brindava com aquele concerto magnífico, novamente paralisou-se, mas, dessa vez, para toda a eternidade.
A peruca desgrenhada – infestada de insetos e vermes –, a pele da face colada aos ossos, os dois buracos negros onde deveriam estar os globos oculares, a boca em decomposição com dentes podres à mostra, todo aquele conjunto pútrido que exalava um horrível odor virou na direção do estudante e, com suave e educada voz, solicitou: “Termine a música”. O jovem não o atendeu, a paralisia não deixava. A resposta veio do órgão em notas desordenadas, tocadas em frenesi, absurdamente altas. Era a sonata fúnebre, que tornava a noite mais fria e aterrorizava as mentes distantes e confusas dos que a ouviam, sem ainda saberem que aquela anunciava uma série de várias mortes.
Assim como a primeira vítima, muitas outras foram encontradas naquele cemitério. Sempre apresentando as mesmas características, os defuntos eram achados de manhã, rígidos, gélidos, com expressão de extremo pavor e marcas de sangue vindas dos ouvidos. Outro fator comum: todos eram profissionais ou estudantes de música de extrema competência. As mortes sempre eram precedidas de um concerto Bachiano, começado pela “Tocata e Fuga em Ré Menor” e aconteciam uma noite por mês, nos dias vinte e oito – dia em que Bach faleceu. Apesar de todas as semelhanças, o mistério seguiu sem ser desvendado. Não demorou muito para dizerem que aquilo era uma maldição e de darem-lhe o nome de “O Canto da Sereia de Bach”, já que a bela melodia sempre se mostrava como um fatal e irresistível convite ao além-túmulo.
Quase um ano após o início das mortes, passava pela região um viajante austríaco, excepcional estudante de música, chamado Wolfgang Amadeus Mozart. Quando soube da maldição, não se alarmou, disse apenas que gostaria de ouvir o tal concerto fúnebre e de conhecer o seu autor. Foi alertado de que a história era verdadeira, de que as pessoas já não queriam mais estudar música, e ele poderia ser o próximo, e o dia fatal estava se aproximando... Nada disso o espantou.
Dia vinte e oito, “Tocata e Fuga em Ré Menor”, tudo como haviam dito, e lá estava Mozart dentro do cemitério. Com os olhos fechados, deixava-se extasiar com as composições de Johann Sebastian Bach, num estado de euforia sobrenatural. Subitamente, o som se extinguiu. O jovem despertou do transe e dirigiu sua visão ao concertista. Aquela mesma figura cadavérica, que levara tantos a sucumbir, apontava-lhe seus terríveis olhos ausentes. E como todos os outros, também Mozart paralisou-se. Junto à imagem macabra, sentiu o cheiro da putrefação. As náuseas dominaram-no, o que o fez libertar-se da paralisia, caindo de joelhos a largos vômitos. Em meio a engasgos, tosses e ânsias, ouviu a frase mortal: “Termine a música”.
Confuso, desnorteado, Mozart tentou se levantar apoiando-se no órgão, que sua mão atravessou como se nada ali estivesse. Caiu sobre o vômito, começando a recobrar a razão e tentando afastar-se daquele prenúncio da morte. De bruços sobre a terra, sentiu algo prendendo-o pelo pé. Não teve coragem de olhar para ver o que era. E novamente a voz suave suplicou: “Termine a música”. Fazendo uma desesperada oração mental, tateou o solo até encontrar uma pedra pontiaguda. Com ela, começou a desenhar no chão a partitura do final de uma recente composição sua – a primeira a lembrar que estava em harmonia com a música inacabada de Bach. Terminando, viu que a perna já estava livre. Correu o mais rápido que pôde, sem olhar para trás. O som de sua composição servia de trilha sonora para a fuga, enquanto ele pensava como, até o momento, aquela música nunca havia lhe parecido tão viva e tão mórbida. Prometeu não mais tocá-la.
No dia seguinte, o jovem Mozart já não se encontrava pela cidade. “Mais um levado pelo Canto da Sereia de Bach”, diziam. Contudo, soube-se na hospedaria que ele havia partido durante a madrugada, são e salvo, após o sinistro concerto. No cemitério, ao invés do esperado músico morto, foi encontrada apenas uma inscrição na terra, parecida com o trecho de alguma partitura. Desde então, não se noticiou mais vítimas do “Canto da Sereia de Bach”.
4 comentários:
Bonita a história.
Obrigado pela leitura, Mariana. Abraço!
Que legal, Carlos. Refazendo a história...
Pois é, Caio. Este texto surgiu de um dos temas da Oficina E-TL. Gosto dele, apesar de não lhe ter achado um desfecho ideal. Ainda assim, agrada-me o resultado como um todo.
Valeu pela leitura. Abração!
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