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quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Um lugar para viver

Léo Borges

O silêncio de uma noite amena no Monte Kofa, sudoeste do Arizona, Estados Unidos, era novamente cortado por estampidos penetrantes. Com as folhagens das árvores próximas sacudidas pelos tiros, o terror mais uma vez entrava pelos ouvidos sensíveis daquela criatura.

Outrora caçadora de subsistência, a onipotente aquila chrysaetos se via agora encurralada por assassinos frios, que a desejavam apenas como um portentoso troféu empalhado, da mesma forma como já haviam feito com outros de sua família. Ainda que aquele fosse seu habitat, um lugar de paisagens belas, não obstante considerado hostil pelos invasores, lhe escapava motivos para permanecer. Seu espírito guerreiro e perspicaz não encontrava defesa contra armas de fogo de cruéis caçadores e seus cães farejadores. Os pares da linhagem accipitridae já haviam sido dizimados e de sua espécie ela era uma das únicas em Sonora.

Voou. Um voo longo e sem rumo. Não sabia para onde ir, apenas queria fugir, encontrar um lugar que a acolhesse. Sentia-se agora como uma de suas presas, perdizes ou pequenos lagartos, que corriam assustados quando viam a sombra ágil planando por perto. O mergulho da ave de rapina era uma morte quase certa para qualquer um desses seres. No entanto, agora era ela quem experimentava a sensação de fragilidade e medo. Cada quilômetro que se afastava das colinas era um pouco mais de pânico para suas asas carregarem. Seu porte nobre e magnânimo cedia lugar a um semblante de ave comum, e isso a irritou profundamente.

Lembrou-se do que certa vez um camaleão, que fora uma de suas refeições, lhe havia dito pouco antes de virar almoço: “Você não passa de um pombo rupestre! Queria ver se manteria essa pompa numa cidade como Nova York! Lá você morreria de fome, pois na Big Apple as aves comem pipoca dos turistas e você não teria uma única lagartixa para se servir!”. De certo foram as últimas palavras do réptil audacioso, mas que feriram fundo a ave de garbosa penugem amarronzada.

“Ora! Comparar-me com um pombo! Uma ave repugnante, primo em sexto grau que vive à mendicância nas metrópoles!”. Aquela pitoresca conversa com o bicho gelado voltou com força em sua mente. Se pássaros tão inferiores se adequaram a tal situação desfavorável, por que ela não conseguiria passar por semelhante mimetismo?

Decidiu que iria voar milhares de quilômetros em direção à costa do Atlântico e que se estabeleceria exatamente na chamada Capital do Mundo. Não sabe se seria algo inédito em termos ecológicos, mas se os homens invadiam seu território para caçar indiscriminadamente, por que ela não poderia fazer o inverso? O caminho era longo e extenuante, porém, a águia real estava disposta a provar que poderia vencer o desafio e, para isso, teria de utilizar uma característica com a qual monitorava suas vítimas: a paciência. Em alguns trechos ponderou se não seria melhor tentar viver caçando pequenos mamíferos no Texas ou em Oklahoma, mas ela estava obstinada pelos ares do extremo Leste, lugares que só conhecia pelas conversas das gaivotas andarilhas.

Frio e calor intensos não perturbaram a ave solitária tanto quanto o que ela viu. Seu aguçado mecanismo visual passou a enxergar fatos e objetos que antes ela não percebia (ou que ela nem sabia que existiam). Casas, fazendas, estradas, prédios, parques, indústrias, shoppings, fumaça e barulho. Tudo lhe parecia muito estranho, ainda mais quando viu multidões de humanos andando de um lado para o outro, como formigas operárias. Enfurnados em veículos em autovias ou entalados dentro de trens e ônibus, eles fervilhavam no solo; foi nessa hora que a ave agradeceu a natureza por suas asas. “Devem estar felizes”, pensou a águia, sem muito crer. “Mas, se vivem bem nesse caos, por que alguns se desgarram e vão nos matar lá nas montanhas?”. Viu letreiros luminosos com as palavras coloridas “burguer” e “grill” e estas informações a fizeram juntar as peças: “então, essas pessoas comem vacas e bois assados, mas não águias".

O pensamento intrigou a águia por duas razões: entendeu que sua carne não era tão especial como alimento e, assim sendo, as mortes de seus familiares no Kofa seriam mesmo para fins de diversão. “Um reles camaleão tem carne mais nobre que a minha na escala de predadores. Ele serve para minha subsistência e eu sirvo apenas para embelezar ambientes. Coisa mais fútil eu sou!”. Antes que uma crise existencial se instalasse definitivamente na cabeça da ave, e ela acabasse por encontrar um ponto em comum com os renegados pombos nova-iorquinos, resolveu arrumar um canto para descansar, achando que, pela enorme quantidade de arranha-céus, já houvesse chegado ao seu destino.

– Uma águia perdida no centro de Chicago! – comentou um surpreso pardal com outro de maneira brincalhona.

– Aqui não é Nova York? – perguntou a ave, tentando manter o ar majestoso.

Eles riram da pergunta e, antes de se debandarem em clara fuga, escarneceram:

– Claro que não! E nem pense em ir para Nova York! Com esse senso direcional, se não morrer de fome por lá vai virar bibelô em zoológico!

Essa declaração só serviu para deixar a águia real ainda mais decidida em sua jornada. Iria não apenas migrar à Grande Maçã como conquistaria seu espaço na metrópole. Talvez não fosse uma entre tantos, conforme apregoava a cunhagem nas moedas – e pluribus unum –, onde sua imagem aparecia vistosa como o grande símbolo yankee que era, mas certamente já era vitoriosa apenas por ambicionar algo tão desafiador. Com o tempo, acreditava que homenagens seriam rendidas como fatos que se sucedem e, então, sua pequena ação migratória teria efeitos fortíssimos em outras áreas no país, quem sabe no mundo. A partir daí, viveria bem e sem muitos esforços para alcançar outras de suas metas. Por enquanto, o que ela estava sentindo mesmo naquele instante era fome. Muita fome.


* * *


Aquela pequena sacola estava mesmo difícil de abrir. Já encontrara outras assim, mas normalmente suas presas não demoravam muito para rasgar o lixo. Quando finalmente conseguiu, viu uma sombra agigantando-se e do céu um pássaro se engalfinhou com ele na luta pela comida.

– Ei, o que é isso?? – perguntou o vira-lata, ainda sem saber bem quem era seu rival.
O pássaro, faminto e sujo, pulava e tentava bicar o que encontrava dentro da sacola.

– Eu que pergunto. Que comida é essa? – disse a ave referindo-se ao que encontrara.

Quando viu se tratar de uma águia real, o cão de rua ficou perplexo.

– Uma águia em plena Madison Square?!

– Sim. Sou uma legítima aquila chrysaetos linnaeus e vim de longe conhecer, com pretensões de morar, em Nova York – disse o pássaro procurando mostrar nobreza no falar.

– Já vi falcões no Central Park, mas não uma águia real. Seu porte é mesmo nobre, mas essa sua penugem empoeirada e esse seu ataque esfomeado à minha sacola lembrou-me mais um desses pombos de marquise.

– Cheguei há pouco tempo e ainda não encontrei nada para comer. Desculpe-me pela possível falta de educação – retrucou a ave, torcendo o bico ao ouvir nova comparação com pombos. O insólito encontro acabou marcando uma amizade entre ambos.

– Qual seu nome, pássaro?

– Samiz. E o seu?

– Não tenho. Mas, algumas pessoas me chamam de Beethoven. Enquanto alguns cachorros ficavam parados em restaurantes finos, esperando sobras da janta, eu preferia ficar na porta de saída da Broadway!

– Hum... você é mesmo um cão sofisticado, hein? – disse Samiz, lembrando dos agradáveis sons agudos que o vento fazia quando zunia pelas fileiras de cactos no Kofa.

– Apenas leio jornais, livros e revistas rasgados e amassados que as pessoas jogam fora. Não sou nenhum beagle, chow chow, poodle ou schnauzer, mas nem por isso fico fora do que acontece no mundo. Viver na rua tem algum charme – disse o cachorro com uma melancolia disfarçada. – Venha, Samiz, serei seu guia aqui. Vou mostrar-lhe as melhores partes de Nova York sem gastar nada além de penas e patas.

Beethoven sabia que a ave real poderia visitar os pontos turísticos por vários ângulos justamente por sua condição alada, mas mesmo assim gostou da possibilidade de ser um anfitrião. Samiz admirava aquele mundo novo que se descortinava em sua frente. Conheceu Manhattan, voou e pousou no ponto mais alto do Empire State, deslumbrou-se com a Estátua da Liberdade, deu rasantes pela elegante Fifth Avenue, brincou com o touro de bronze na Wall Street e se impressionou com as luzes de Times Square. Enquanto curtia os endereços que Beethoven apresentava, Samiz percebeu, do alto, que a vida de seu amigo era feliz apenas em aparência. Num dos rasantes, viu quando um menino, com uma sacola com comida, atirou um objeto na direção do cão, que empinava o focinho, tentando captar algum aroma agradável.

Vendo aquilo, a águia, desceu como um raio e infernizou o garoto que, ao correr, abandonou a sacola no chão.

– Os pássaros estão me atacando! – vociferou, despertando olhares curiosos para a águia, que, então, pousou sobre a haste de uma bandeira americana, aprumando as penas.

Beethoven, apesar de não ter aprovado o ataque, aproveitou para rasgar a embalagem largada. Para sua alegria, encontrou batatas-fritas em profusão, além de uma fina barra de chocolate.

Samiz quis crer que aquele garoto iria passar a respeitar os animais depois de sua firme atuação, que lembrava até alguns de seus pares no célebre filme de Hitchcock.

– Sabe, Samiz, o que eu mais queria na minha vida era encontrar um dono. Alguém que gostasse de mim, como acontece com esses cachorros de raça. Eles saem, passeiam, andam pelas ruas com bonitas coleiras, voltam para suas casas e não são apedrejados.

– É, mas também não devem comer Hershey’s com avelã em seus lares... – brincou a ave, tentando suavizar a prostração de Beethoven.

– Nossa amizade não deve durar muito. Como não tenho um lugar para viver, logo serei recolhido pelo serviço sanitário da cidade e você terá de ir morar na copa das árvores mais altas do Central Park, se quiser garantir uma vida por aqui.

A águia se entristeceu com os dizeres de seu amigo, pois sabia que aquilo significava o que ela também achava, mas tinha medo de admitir.

Andavam já pensando no fim da bonita amizade entre uma águia real e um cão de rua, quando Beethoven chamou sua atenção para uma pequena matéria no The New York Times, ainda fechado dentro de um daqueles newspaper dispensers na calçada.

– Olhe, Samiz! “Governo do Arizona proíbe caça em Sonora”!

A ave pousou sobre a máquina e pôs-se a ler, interessadíssima, a matéria que lhe era de total importância. Ao final, ao invés de comentar sobre ela com Beethoven, chamou seu amigo e indicou outra, ainda menor, logo ao lado: “Garoto prodígio promove hoje oficina no Ground Zero”.

– Sei quem é essa criança – disse o cachorro. – Seus avós vieram do Brasil, trabalharam no World Trade Center e sobreviveram ao atentado quando o garoto ainda tinha dois anos. A família dele foi solidária todo o tempo com as vítimas e, desde então, ele aparece no Espaço Zero. No local há uma escultura provisória chamada Monumento da Paz, pertinente aos acontecimentos com o WTC. Este garoto é incrível, pois produz belos versos e escreve ótimos e reflexivos textos, além de conversar com as pessoas sobre seu método criativo. Nenhuma editora ainda se interessou em publicar, pois acham que é um material que não vende, que são apenas inócuas mensagens de perseverança. Preferem algo que contenha violência, como os livros sobre os acontecimentos que vitimaram as pessoas do onze de setembro. Mas, por que isto te criou tanto interesse?

– Está dito, nas letrinhas menores sob a manchete, que ele está à procura de um cão para ser seu companheiro!

– Um cão?! E você acha mesmo que ele iria escolher um vira-lata como eu? Claro que não! E isso é tudo brincadeira sua, águia piadista. Afinal, como você conseguiria ler letras tão minúsculas?? Ainda mais através do vidro!

Não daria para Samiz explicar o quão perfeito era seu mecanismo visual em tão pouco tempo. Ao invés de tentar responder, a ave pediu apenas que o cão lhe dissesse onde ficava esse monumento conhecido como Esfera.

O cão apontou e Samiz voou na frente:

– Agora sou eu que serei o cicerone. Come with me!

Ao tempo em que corria, Beethoven se sentia cada vez mais feliz. Samiz era o primeiro ser a se preocupar com ele, a participar com ele de alguma coisa, ainda que fosse um pequeno evento de um desconhecido garoto que surpreendia as pessoas com sua arte.

Ao chegarem perto da obra de Koenig, se surpreenderam com a canção que a envolvia.

– Que música é essa? – perguntou a águia, também estimulada pelo som penetrante e ao mesmo tempo suave.

– Não reconhece? É uma das sonatas do meu xará menos ilustre: Waldstein! – exclamou Beethoven, explicando para Samiz que o nome daquele menino era H. Datson, mas que praticamente todos só o chamavam de Dat.

O som guiou-os até o menino. As pessoas que sabiam do evento ofereciam akitas, collies, chiuauas, todos muito bonitos e bem nutridos. E a todos ele acariciava e brincava com sinceridade. Mas, quando viu o vira-lata Beethoven ao longe, misturado às pernas dos curiosos, tentando ali permanecer sem ser enxotado, não teve dúvidas: era aquele cão que ele queria ter!

Pediu que todos abrissem passagem para o cachorro que, em princípio, não entendeu que era com ele. Mas, quando viu que não havia mais ninguém atrás de si, tomou um susto. Será mesmo que o menino queria tocá-lo? Queria conhecê-lo? Queria se tornar seu dono?

Beethoven caminhou com receio, olhando as pessoas a sua volta, pessoas que antes eram sérias e, agora, afagavam sua cabeça e mexiam em seu focinho. Ao chegar próximo, recebeu um repentino, agradável e honesto abraço do menino, que fechou os olhos ao envolvê-lo. Beethoven sentiu algo que nunca sentira antes, um carinho especial que lhe trouxe profunda felicidade e, então, retribuiu com uma lambida no rosto.

– Qual será o nome dele? – alguém perguntou.

– Ele possui nome desde sempre: Beethoven.

O cão levou um susto: “como ele sabe meu nome?!”. Mas, lembrou-se que aquele era um menino especial e que provavelmente já havia depreendido, de alguma forma, que seu nome só poderia estar relacionado com o mestre da música que ali servia como fundo.

Dat, que já havia inclusive arrumado uma coleira para o seu novo companheiro, levantou-se e paramentou o cão com o acessório. Beethoven mesclava felicidade e incredulidade, pois sempre apreciou o menino e sua oficina mambembe, mas nunca imaginou que pudesse tê-lo como dono um dia.

O garoto abriu passagem entre as pessoas que ali estavam sob aplausos destas para o cão escolhido. Beethoven estava mesmo impressionado com os elogios que agora lhe eram dirigidos e se esqueceu momentaneamente de Samiz. A ave, pousada sobre o monumento, acompanhava com satisfação o desenrolar do episódio. Seu amigo encontrara um companheiro e ela considerou ser melhor não romper aquele laço harmônico entre ambos.

Viu que seu jeito, outrora prepotente, havia mudado com Beethoven e toda aquela saga. A humildade do cão havia lhe tocado. Os momentos alegres ao lado de um cachorro vira-lata lhe deram nova perspectiva e, agora, mesmo os basset hounds farejadores do Kofa não lhe pareciam ameaçadores. Aquela aventura havia sido mesmo muito boa, talvez o “marco zero” de sua vida, como o nome daquela bela escultura sugeria. Gostara enormemente de Nova York, mas era hora de voltar. Lembrou-se da notícia sobre Sonora, de que não haveria mais caça na região, e resolveu que iria partir. Deu um último giro pela ilha de Manhattan, observando pela última vez seu amigo canino e, com a saudade já apertando seu coraçãozinho, seguiu, ainda naquela noite, rumo ao seu habitat natural no oeste do país.

Beethoven lembrou-se da história contada por Samiz sobre escolhas e decisões. “Um entre tantos”: o escolhido entre vários fora ele. Mas, e o amigo de penas que o acompanhara em toda aquela jornada? Onde estava? Preocupou-se. Não o viu mais desde que estivera em transe com o ocorrido. Começou a olhar para todos os lados, para o topo dos edifícios, mas já era praticamente noite e, como não possuía a mesma incrível visão da águia, só o que enxergava era a esplendorosa iluminação da Rockefeller Park. Dat percebeu o agito do amigo e parou o passeio para confortá-lo. A criança era detentora de uma sensibilidade nata na compreensão de animais.

– Sei que está aflito um amigo seu. Mas acredite que ele está bem, pois sabe que você está feliz agora. Estaremos em casa em breve e logo ele também vai estar.

Beethoven impressionou-se com Dat. Viu nos olhos do garoto o mesmo brilho flamejante que havia nos de Samiz. O cãozinho estava não apenas intimamente feliz como teve certeza de que naquele entardecer ocorrera alguma simbiose entre Samiz e Dat. E que isso, de alguma forma, foi provocado por sua perseverança, e a do amigo alado, em querer encontrar um lugar para viver.

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