O Guerreiro das Nuvens
Jey Fyu era um exímio Guerreiro das Nuvens. Com sua lâmina escarlate, cortava céus e mares feito vespa rainha em mato-de-alvarenga. Em noites de três sóis e duas luas, chamadas Noites Quincas, era impossível não se ver no horizonte sua armadura alada bailando com cabeça de dragão. O bravo combatente era o protetor das almas tortas da Terra do Fim, um dos reinados do grande Pai-pai.
Quando não estava meditando em sua nuvem colossal ou desfilando pelos ares, Jey Fyu descia à Floresta das Almas Tortas para tomar leite de anta e comer lascas de tacho azul – os alimentos principais da região.
O guerreiro conhecia todos que ali habitavam e, a cada um, oferecia amor inigualável. Sempre que estava na floresta, sentia seu espírito engrandecer. E as almas, quando recebiam sua visita, brilhavam como mosquitos-de-fogo.
Assim era em todos os reinados do Imperador Pai-pai. Cada Guerreiro das Nuvens ficava responsável por um deles, fazendo prevalecer a harmonia do Império. Jey Fyu era responsável pela Floresta das Almas Tortas, protegendo-as no caminho de volta à Terra do Início.
Após infinitas eras servindo a Pai-pai, Jey Fyu teve sua honra e coragem reconhecidas, sendo convidado a tornar-se chefe da guarda da Nuvem Cinzenta, a morada do Imperador. As almas tortas, então, viram o grande dragão dançar no céu, mesmo não sendo Noite Quinca. Uma forte tempestade encharcou a floresta de tristeza – eram as lágrimas angustiadas do guerreiro por ter que abandonar o povo que tanto amava.
Jey Fyu visitou as almas, uma a uma, fazendo questão de comer leite e tacho com todas elas. As visitas aumentaram-lhe a tristeza e deixaram claro que ele não podia abandonar o lugar. Na verdade, não conseguiria ir. Decidiu-se por não aceitar a oferta do Imperador, já sabendo das consequências irreversíveis em que isso implicaria. Ele ou Pai-pai teria que morrer. Estava disposto a enfrentar seu destino.
O Imperador recebeu a notícia com naturalidade, como se já previsse que assim seria. Convocou seus dois maiores lutadores, Len Lan e Shouryo Ken, e mandou-os ao caminho da Floresta das Almas Tortas. As ordens foram claras: lutar no Caminho, sem a presença das almas da Floresta; matar Jey Fyu sem piedade; trazer sua armadura de volta à Nuvem Cinzenta.
O Caminho das Penúrias
Jey Fyu seguiu para o Caminho sem tristeza nem remorsos. Lutaria até suas energias se findarem e, caso tivesse que sucumbir, seria em razão de seu amor pelas almas tortas.
O Caminho das Penúrias era a única via de acesso entre qualquer dos reinados de Pai-pai. Árvores com troncos imensos atingiam as nuvens e faziam da estrada uma eterna penumbra. Apenas os merecedores podiam trilhar por suas entranhas, e Jey Fyu era um deles.
O grande guerreiro tinha um objetivo: destronar o Imperador Pai-pai. Só assim poderia continuar zelando por suas amadas almas. Seguiu pelo Caminho das Penúrias, em direção ao portal de entrada da Nuvem Cinzenta. Enquanto avançava entre as árvores colossais, ouvia o som macabro dos espíritos perdidos e via o tom escarlate de sua espada ser abraçado pelas sombras.
Jey Fyu seguia atento, punho preparado, visão de dragão. Percebeu que, além da lamúria dos espíritos, havia um ruído diferente surgindo. Parecia o rugir de uma grande fera. Aos poucos, ficava mais estrondoso. Segurou com as duas mãos sua espada, postura de luta. Estava preparado.
Len Lan
Jey Fyu notou que a penumbra do ambiente se transformava em trevas infindáveis. O rugir, mais alto, era insuportável. Estava numa completa escuridão quando foi atingido. Não era nenhum monstro: uma das árvores foi atirada sobre ele. O enorme tronco, de diâmetro gigantesco, bloqueou a entrada da pouca luz que alcançava o Caminho das Penúrias. O som bestial provinha da incrível velocidade com que a árvore cortava o vento. O impacto foi como uma explosão dos deuses. Jey Fyu fora atingido. Sobre o tronco, a imagem de um guerreiro com cabeça de lagarto sorria. Era Len Lan.
O inimigo recém-chegado mal teve tempo de se alegrar com o ataque bem sucedido. Sentiu um arrepio nas costas e viu um fio de luz vermelha riscar seu corpo, dividindo seu sorriso ao meio e se estendendo por toda a árvore sob seus pés. A luz se libertou com violência de dentro do tronco que, partindo-se em dois pedaços, levava consigo cada metade do corpo de Len Lan.
Shiva Kung
Jey Fyu continuou sua jornada pelo Caminho das Penúrias fortalecido. A primeira vitória aumentou sua convicção, no entanto, sabia que maiores provações ainda estavam por vir.
Não demorou muito para avistar seu próximo obstáculo. A uma distância que não enganavam os olhos, avistou Shouryu Ken. Como já imaginava, o novo oponente não estava sozinho: trazia seu animal de estimação, Shiva Kung, o Gorila de Dez Membros.
A luta não seria fácil. Em cada um dos membros, Shiva Kung trazia uma Lâmina do Sol. Jey Fyu sabia que, contra aquilo, sua armadura de nada serviria. Teria que ser preciso nos golpes.
O gorila avançou em saltos frenéticos. Mesmo com todo seu tamanho, era incrivelmente veloz. Jey Fyu invocou a alma de sua espada, transformando-a em duas. Tendo uma em cada mão, esperou a fera se aproximar. Os espíritos perdidos prosseguiam com a melodia funesta. A penumbra fazia Shiva Kung ainda mais negro. Jey Fyu fixou seus olhos draconianos na fera. Não podia errar, não podia errar.
Ao longe, Shouryu Ken via sua mascote decepar o braço esquerdo de Jey Fyu e, em seguida, perder todos seus dez membros. A lâmina escarlate penetrou lentamente o coração do gorila. Shiva Kung estava morto.
O Imperador Pai-pai
Apesar de perder um braço, o protetor das almas tortas não se abateu. Sentia-se mais poderoso a cada vitória. Sem clemência, iria até o fim.
Jey Fyu avançou em fúria sobre seu adversário. Shouryu Ken aguardava estático, parecendo não querer lutar.
Quando os dois estavam frente a frente, ouviram uma voz de trovão: “Parem”. O Imperador Pai-pai chegara. “Não quero perder meus maiores guerreiros”, disse ele, “Devemos seguir os preceitos da Lei dos Ancis e restabelecer a harmonia de nosso reino”.
Jey Fyu sabia que aquilo não era possível. Se parasse ali, teria que abdicar da Floresta das Almas Tortas, e isso, nunca faria.
“Meu Imperador, sabemos o que a Lei diz. A morte é a recompensa dos que não seguem as ordens superiores. Mas...” – Jey Fyu não conseguiu terminar a frase. Enquanto falava, uma lâmina veloz atravessou o corpo de Pai-pai. Shouryu Ken o assassinara.
Retorno às almas
“Não desejo lutar, grande Guerreiro das Nuvens”, disse Shouryu Ken a Jey Fyu. “Há tempos Pai-pai levava o Grande Império à decadência. Não podíamos permitir que continuasse por mais tempo. Alguém deveria agir. Assumirei o trono e pretendo contar com sua ajuda em meu Império”.
A confusão tomou conta de Jey Fyu. Não esperava por aquilo. Achava que teria que lutar até a morte. “E o que deseja de mim neste novo Império?”, perguntou.
“Volte para a Floresta das Almas Tortas. Lá sempre foi seu lugar. As almas precisam de você”, falou Shouryu Ken.
Jey Fyu paralisara, pensativo. Pai-pai estava morto à sua frente, não fazia mais sentido continuar lutando. Voltaria para o seu povo e continuaria a viver em sua nuvem. Era o que desejava desde o início. Decidiu, assim, devolver sua espada escarlate à bainha. Havia perdido um braço, mas tinha suas almas de volta, e isso era o que importava.
O grande Guerreiro das Nuvens retornou pelo Caminho das Penúrias satisfeito. Chegou à sua Floresta sendo recebido com grandes festejos. A primeira atitude que teve foi sentar-se junto às suas amadas almas para tomar leite de anta com tachos azuis.
2 comentários:
Que texto bonito!
Amei!
Excelente! Muito bom argumento e desenvolvimento...a história é linda.
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