Havia uma menina que catava aflições em jornais e esperanças em papelões. Nestes, ela reciclava estrelas que lhes pousavam escondidas durante a noite, e enfeitavam as paredes de zinco, seu dossel de caixote, sua cama de plástico. Havia essa menina e havia nela, menina, muitos sonhos, catados aqui e acolá, que aprendera em frente à TV que via na loja de eletrodomésticos, nos livros velhos que encontrava, nas luzes vivas que a fitavam. De pés descalços menina. Sem ter que ter, sem ter que vestir e comer. Sonhava com sapatinhos, um vestidinho, com uma rendinha só, um bordadinho, o tecido podendo ser de chita. Essa menina sonhava. O Sonho se compadeceu dela e sonhou dia e noite sem parar até virar realidade. Desceu um homenzinho muitas léguas e subiu outras tantas até o reino da Carrocinha onde a menina catava aflições em jornais e esperanças em papelões. Comprou seus pés descalços por duas centenas de notas reais lá do reino da Carochinha, e, puxando-a pela mãozinha, subiu léguas, desceu algumas, e chegou até onde os pés se confortam. Fez-lhe festa, na menina. O homem grande, a mulher grande, o menino, outra menina. Que tinha que lavar, passar, cozinhar, sem provar. Em troca um sapatinho, um vestidinho com um bordadinho, sendo o tecido de chita. A menina já não catava papelões em que fazia estrelas, jornais em que colhia angústias. O senhor Sonho, de bom ou mal, foi fenecendo. Cabelinhos brancos, já nem suspiro à noite. Soninho pesado de dar dó. Boquinha aberta. A menina dos olhos verdes, que tudo via, se enraiveceu do Sonho, e o acordou com um safanão. Fez de novo sonhar a menina, mesmo que ela já não fizesse questão. Sonhou então o senhor Sonho no cerebrinho dela e ela cogitou na idéia de uma casa grande, espaçosa, onde pudesse gozar seu vestidinho, seu sapatinho. Bateu na porta uma mulher cheirosa, em um dia de chuva e a convidou consigo levando. Em troca a menina teria que ser muito carinhosa. Tanto carinho dava e recebia que a menina já não se dava conta de que crescia, e de que já não era menina. Era só flor murchando dia-a-dia sufocada de tanto cheiro estranho, apertos de noite e de dia. A menina dos olhos verdes se enraiveceu novamente, resgatou o sonho que fugia. A menina moça florinha desceu léguas, subiu algumas, e chegou sozinha ao reino da Carrocinha, onde voltou a colher angústias em jornais e esperanças em papelões, dia, noite, noite, dia.
1 comentários:
Muito bonito, Simone, fez-me lembrar um pouco a fábula de Chun-Tzu, do monge que não sabia se era ele quem sonhava com uma borboleta, ou se era uma borboleta sonhando ser um monge sonhando com uma borboleta.
Abraços.
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