Ensaboando a minha cabeça
José Guilherme Vereza
Chato foi encarar os olhos do inspetor depois de ter visto coisa tão linda pela janela quebrada.
- Mas eu não fiz nada, seu Mota.
- Mentira. Você violou uma norma disciplinar do colégio. Mais importante que isso só um mandamento bíblico. E se você não confessar, sofrerá uma suspensão de dez dias, sem direito a segunda chamada dos exames. Ouviu bem? Dezzzzzz diassssss!
Dez dias que me encheram de perdigotos. A boca porca estava a um centímetro do meu nariz. Não pude resistir.
- Foi só uma espiadinha, Seu Mota. Estava subindo a escada e vi um buraco na janela quebrada. Subi e olhei. Curiosidade pura. O senhor sabe, aquela parte do colégio é um mistério. Mas juro que não vi nada além de chuveiros e ladrilhos.
- Mentira!
Mentira mesmo. O banho de Bernadete não saía da minha cabeça. Foi de caso pensado. Naquela tarde não fui embora com os meninos, fiquei perambulando pelo colégio até que terminasse a ginástica das garotas. Tinha que pegar pelo menos uma delas. Já não tinha graça ficar imaginando o que havia por dentro das saias pregueadas, justas, coladinhas nas coxas. Estava nervoso, com medo que descobrissem que eu tinha quebrado o vidro da janela na noite anterior. Andava pra lá e pra cá, roía as unhas, suava as mãos. Chupei dois picolés de côco. Um atrás do outro.
Quando a campainha soou, seis horas, fim das aulas. Dei um tempo. Corri para a escada dos fundos. Pulei a corrente e me acocorei no alto, latões sobre latões, de olho no buraco da janela. Ouvi as meninas chegando, fazendo barulho, falando alto, conversando sacanagem. E não sabia que elas também falavam sacanagem. Só consegui enxergar um chuveiro na minha frente e fiquei preocupado pensando que alguma baranga fosse tomar banho logo ali, no meu alvo calculado. Estava tenso. Dessa vez não chupei picolé. Fumei meu primeiro cigarro. Tossi pra dentro, um horror, tosse escondida, fumaça infeliz que quase acaba com a festa.
Foi aí que apareceu a Bernadete. Na mosca. A melhor da escola. Nua, nuinha, como eu nunca tinha visto nada tão nu antes. Quase morri. Aquele corpo moreno, desenhado com marcas do maiô, cabelos longos, pretos, cheios de shampoo, 16 anos ensaboados, peitos durinhos. E aquela coisa peluda igual à minha coisa peluda. Só que sem pinto nem bagos. Tudo que eu mais queria na vida. Uma mulher que não fosse de foto de revista a menos de um metro de mim. E não teve grito de socorro coisa nenhuma, como afirmou o porco do Seu Mota. A sacana até que me viu e gostou. Filha da puta. Depois de ensaboar bastante aquele rabo na minha frente, fazer espuminha com os pentelhos e bater lingüinha pras minhas fuças, teve coragem de me dedurar para a Chefia de Disciplina. Sonsa.
***
Os dez dias de suspensão, sem direito a segunda chamada dos exames, foram transformados numa anotação na caderneta, que me valeu um fim de semana inteiro trancado dentro do quarto.
- Ora, onde já se viu, um menino tão bem criado!
Passei o sábado e o domingo com aquele banho no teto. Quando fechava os olhos, Bernadete aparecia no preto das minhas pálpebras. Sempre se ensaboando, se esfregando, se ensaboando, se esfregando, se ensaboando, se esfregando. Fazendo espuminha entre as pernas, batendo lingüinha.
A segunda-feira custou a chegar. E como custou a chegar. Mas quando chegou, chegou triunfante. Bernadete no portão do colégio. Logo ela. A melhor da escola. Com seus cabelos longos, pretos, dezesseis anos moldados na saia justa, peitinhos durinhos presinhos na blusa branca. Olhando para mim como se me reconhecesse de algum lugar estranho.
Fingiu que não me viu, a sacana. Entrou na sala apressada, sentou-se na penúltima fila e cruzou as pernas. De propósito, mostrou o liso da pele cor de jambo e a beiradinha da calcinha de renda. Saí do meu lugar sem fazer barulho e sentei bem atrás, na última fileira, quase cheirando os cabelos longos, que invadiam a minha carteira. Deu vontade de sussurrar: “Quem-é-ca-gu-ê-te-me-re-ce-ca-ce-te”. Mas achei que aqueles cabelos pretos iam me fazer cócegas no nariz e espirraria fazendo alvoroço. Mesmo sem fazer nada, ela sentiu a minha presença. Virou o rosto e me sorriu um sorriso lindo, tímido e ousado, como se estivesse pedindo perdão, e não me perdoando ao mesmo tempo. Por alguns instantes, pensei que ela estava a fim de mim. E continuei pensando o dia inteiro, até que no fim da tarde saímos juntos do colégio. E juntos, seguimos a pé pela rua sem trocar meia palavra. Nenhum um oi, nenhum ai, nada. Minha mão insistente e suada encostava na dela, buscando alguma definição. Nada feito. Cada vez mais tenso, fumei meu segundo cigarro.
- Lá vem o meu ônibus. Amanhã a gente se vê, tá?
Um banho de água fria. Estava certo que a gente ia se resolver naquela hora mesmo, com um beijo profundo de até amanhã, meu amor. Mas o ônibus chegou antes e atrapalhou tudo. Perdi a coragem. Humilhado, fracassado, submisso, assisti, inerte, minha esperança desaparecer chacoalhante pelo lusco-fusco da curva.
***
Passei uma noite de cão. Pinto duro saindo pelo pijama. Todas as dúvidas do mundo resolveram aparecer. Que diabo. É ou não é. Está ou não está. Pode ou não pode. Quer ou não quer. Dá ou não dá. Fracasso contra esperança. Turno e returno. Briga feia. Jogo duro. Ainda por cima, aquele banho alucinante aparecia em qualquer lugar do quarto. No armário, na parede, no teto, no chão, na cortina. Ensaboando a minha cabeça, esfregando a Bernadete na minha cara. Só consegui pegar no sono quando o dia estava claro.
***
Mãe é mãe:
- Esse menino está abatido, com olheiras. Dona Marina, faz um mingauzinho com gema pra ele ficar forte.
Cheguei no colégio atrasado, suado, arrotando mingau.
A primeira visão: Bernadete perguntando por que não tinha tomado o ônibus com ela. Queria que lhe fizesse companhia até o fim da linha. Desgraçada. E burro. Perdi uma noite inteira duvidando de uma coisa tão certa. Não soube o que responder à Bernadete, mas jurei que nunca mais ia perder a chance. Deixá-la sozinha no ônibus, nunca mais.
Quando a campainha soou, seis horas, fim das aulas, saímos juntos de colégio. E juntos seguimos pela rua sem trocar uma palavra, mas houve um progresso: mãos coladinhas e os dedos embaralhados uns nos outros, esfregando-se e espalhando gostosas sensações pelo corpo. Pegamos o ônibus sem desgrudes. Perguntei o que havia no fim da linha e ela me respondeu que nunca tinha passado do terceiro ponto depois do colégio. Cínica. Senti medo. Um medo gostoso, que me dava coragem. Dá pra entender? Medo e coragem. Uma mistureba tão gostosa quanto a mão que me apertava, me alisava, me apertava, me alisava. Lá embaixo, o pinto sentia o recado. Embolado, mas sentia.
***
O fim da linha era uma praça mal-iluminada. Um bar na esquina rodeado de mesinhas amarelas, algumas árvores, alguns bancos e no meio, bem no meio, um mastro de uns dez metros e pouco se via na escuridão. Aquilo parecia uma gávea das caravelas antigas, onde os marinheiros subiam para descobrir coisas novas. Tinha uns ganchinhos, que deviam estar ali para ajudar alguém a subir, e, lá no alto, uma bandeira encardida pouco se mexia de tão velha.
Lembrei dos romances da televisão. Sentamos no bar e ofereci um drinque à Bernadete.
- Sou de menor, mas aqui a gente pode pedir uma bagaceira.
Boa idéia. Papai bebia bagaceira no frio, e a brisa fresquinha pedia uma bagaceira, embora nunca tivesse passado pela minha cabeça que diabo de gosto tinha uma bagaceira.
Um garçom mal encarado apareceu e foi logo dizendo:
- Manera, mocinha. Vê se não dá vexame de novo, que tu é de menor.
Estufei o peito.
- Se incomode não, seu moço. A moça tá comigo.
- O cara de fedelho é de maior?
- Não importa. Meu pai é tenente-coronel.
Bernadete riu de mim. Fiquei vermelho. Tentei disfarçar, mas, que merda, o que eu poderia ter dito? Que estava me borrando de medo de o garçom cismar com a nossa cara e não servir a gente? Além do mais, lá em casa sempre diziam que filho de militar mandava nesse país.
É claro que ele trouxe a bagaceira. Com um milímetro de língua, entre o copo e os dentes, senti um gosto forte de queimar as entranhas e formigar o couro cabeludo.
Bernadete bebeu num gole só, para mostrar que já era veterana em bebidas violentas. No segundo copo, começou a dizer besteiras. Me sussurrava aos ouvidos as maiores sandices, com hálito de bêbada e a voz fora de rotação.
- Papai tenente-coronel deve estar preocupado. O filhotinho soldadinho não apareceu em casa até agora. Mamãe está tendo um chilique.
E me mordia a orelha.
- O que você vai dizer quando chegar em casa, hein, menino levado? Vai levar um surra daquelas, menininho desobediente.
E me lambia o pescoço.
- Não precisa tremer. Seu Papai tenente coronel vai ficar orgulhoso. Você está muito bem acompanhado, numa praça mal-iluminada.
Merda. Por que fui enfiar o olho no buraco da janela quebrada? Como é que eu fui cair nessa? Pronto. Bernadete bêbada com duas bagaceiras. Me lambendo, me chupando, me babando. E eu querendo ir embora, mas com vergonha de ir embora. Até meu pinto me abandonou. Só pensava na hora de chegar em casa, entrar correndo sem falar com ninguém, me trancar no quarto e nunca, nunca mais, acordar praquele colégio miserável, que só me fazia passar vergonha.
- Me dá um beijo de língua.
- Agora não, o garçom tá olhando...
- Um beijinho só. Língua com língua. Cê vai gostar.
- Eu sei como é. Mas agora não. É melhor a gente ir se arrancando. Tá ficando tarde, vai ver que nem tem mais ônibus.
- Se você não me der um beijo na boca, vou subir naquele mastro e só saio se você me buscar.
- Tá doida, menina, vem cá, vem cá.
Bernadete saiu correndo pela praça. Escalou os ganchinhos do mastro e num instante estava lá em cima. Deixou aparecer, entre um facho e outro de luz que vinham dos carros que passavam longe, as pernas morenas cor de jambo que terminavam numa calcinha branca, quase transparente, que mexia e remexia, no ritmo das besteiras que ela cantava lá de cima.
- Desce daí, Bernadete. Tá maluca.
Meu estômago dava cambalhotas. Nem beijo na boca eu queria dar. Olhei em volta para ver se alguém ria da minha vergonha. Mas tudo era deserto. No bar, o garçom mal-encarado dormia com a cabeça recostada no balcão. Nem aí para os gritinhos daquela doida.
“Se você vier aqui eu te dô, meu amô
Se você ficar aí, não saio mais daqui”.
E cantava e dançava, rebolava e gritava, levantava a saia, mostrava as pernas, ameaçava descer as calcinhas.
O pavor e a bagaceira subiam e desciam pelo esôfago, me doía o pescoço de tanto olhar pra cima. Pensava no papai preocupado, olhando o relógio de minuto em minuto, a mamãe chorando pelos cantos da casa, pelos ombros de Dona Marina, telefonando para as amigas, tias, mães dos amigos, que vergonha. Pensava que podia ter agido que nem ontem, não tomando o ônibus. Pensava que aquela maluca, que me deixou doido por causa de um banho pela janela, pudesse cair lá de cima e, aí sim, ia ser a merda total.
E ela caiu.
Sem gritar, sem cantar, sem gemer.
E como caiu, ficou. De bruços, braços e pernas abertas, fazendo um xis no mosaico da calçada. A blusa branca saindo da saia azul, os peitos esparramados, os cabelos embaraçados, 16 anos espatifados. E o sangue manchando aos pouquinhos as pedrinhas portuguesas da calçada.
Saí correndo pela linha do ônibus, com medo que o garçom viesse atrás cobrar as bagaceiras. Ainda ouvi os gritos de alguém que não pude identificar.
- Não mexe no corpo, nem se mete nisso! Ela tava com filho de milico. Não vi nada, não vimos nada, ninguém viu nada!
Entrei em casa sem falar com ninguém. Me tranquei no quarto e vomitei a noite inteira.
José Guilherme Vereza é publicitário, professor e escritor. Tem livro publicado, peça de teatro encenada, roteiros de TV produzidos, centenas de comerciais criados. É colunista do www.bolsademulher.com.br, colaborador do www.mundomundano.com.br e tem o blog www.30segundos.blog.com. Pela terceira vez é convidado pela Samizdat. Pela terceira vez aceita com o maior prazer e um baita frio na barriga.
terça-feira, 4 de agosto de 2009
Autor convidado - José Guilherme Vereza
por Mariana Valle
1 comentário
1 comentários:
rsrs... Trágico como adolescer. Original e interessante quando se pensa em literatura infanto-juvenil.
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