As Amaranthas




Quando ainda não nos preocupávamos em conter o tempo em ampulhetas, caos e ordem se imbricavam na tessitura do mundo que, por isso, ainda cabia na Poética-palavra do Primeiro Criador. Hoje, porém, as palavras sussurram entre si, segredando, a falibilidade da pretensa Ordem imposta pelos aparatos tecnocratas dos Elfos Menores e eu, que as ouço dizer, devo contar a você.

Elfos Menores têm um vazio em forma de sensatez: toda vez que os dentes de um Vampiro cravam em um pescoço élfico, para levá-lo da vida à não-vida, nosso mundo se confunde com o dos Vampiros – perdemos um Nobre para ganhar um nobre-amaldiçoado.

Criaturas feitas do caos na união de extremos dicotômicos, valeram-se dessa intimidade para controlá-lo pela ordenação em tempo-palavra: diz-se que escondido no espaço que há entre as palavras e as coisas, construiu pequenas máquinas capazes de sonhar uma ordem e impô-la ao mundo.

São ampulhetas cujos grãos, que na inércia se ordenam, retornam ao caos e se reorganizam conforme a dança de quem as sacode: suspensos os limites entre-coisas, mergulham o mundo numa correnteza sem-tempo em que as coisas se confundem, indefiníveis, para com sua força defini-las.

Dizem, em palavras que só o vento pode levar, que são quatro as ampulhetas que, com sua força, são capazes de mover o tempo: chamamo-las de Amaranthas. Quatro para um equilíbrio perfeito; quatro para que se mude o tempo sem deixar memória...

Na ausência de uma das ampulhetas, falhas se espalham pelo plano, e ele pode ser percebido, tal qual o vidro-trincado que se deixa perceber. Três ampulhetas desequilibram um círculo cuidadosamente planejado e arquitetado. Duas ampulhetas nada fazem sem que os olhos Maiores os vejam. E uma ampulheta nada mais é do que uma ampulheta. Quatro ampulhetas: uma para cada Raça Maior, ou as quatro para um único Elfo Menor. O que as Amaranthas mudam, uma Amarantha retoma. Se são quatro, a ampulheta maior. Se forem três, a ampulheta errante. Se forem duas, a errante maior.

Resolvemos confiar as Amaranthas a almas boas de elfos preparados e escolhidos pelo próprio Conselho Supremo, autoridade maior entre os elfos; quatro, um da cada Raça Maior élfica, para guardar, controlar e utilizar, caso fosse preciso, as Amaranthas.

Eis que fora criada ‘A Ordem das Amaranthas’: de 49 em 49 anos, os representantes sacerdotais de cada uma das quatro grandes linhagens élficas se encontrariam para atualizar o tempo divino no mundo pela apresentação dos escolhidos para os Endeusados e para os demais sacerdotes.

Deixaríamos os anos passarem sem que os demais habitantes de Nea conhecessem a existência dessas ampulhetas, porque poderiam ambicioná-las, ou enlouquecer sobre a idéia incontestável de que não passavam de fagulhas de caos ordenadas ao sabor de quem as pode dominar.

Fechou-se, então, um contrato entre os céus e os sábios Elfos, que se comprometeram a controlar essa maldição. Esconderíamos as quatro ampulhetas, para que aos Elfos Maiores coubesse usá-las; e torceríamos para que as usassem com sabedoria, ou que, com mais sabedoria ainda, não as usassem. Mas não foi bem assim que as coisas fluíram...

Comentários

  1. Tem continuação, Sheyla?

    Achei muito interessante a opção por uma linguagem mais rebuscada para um texto infanto-juvenil. Quem foi que disse que temos de nivelar por baixo o tempo todo?

    Parabéns!

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  2. Assim como o Henry, achei interessante a linguagem utilizada. Bonito!

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  3. Muito, muito bacana, Sheyla! Quiero hablarte sobre esse universo, de elfos, caos e tempo. Assim como a Simone, você tem um estilo muito característico, pendendo para a prosa poética. Em Fantasia, eu sou muito "travado", afeito aos clássicos (leia-se Tolkien), cheios de conflitos, de fundamentos históricos, de batalhas e coisas épicas. Nos textos da Simone e da Juliana, e também neste "As Amaranthas" da Sheyla, notei uma leveza diferente da narrativa de Fantasia "de menino". E também, uma vaguidão, uma efemeridade, uma evanescência, um onirismo, uma fluidez na escrita, traduzindo na expressão, na feitura do texto o próprio conteúdo.

    Bacana mesmo. Parabéns para nossas estreantes, Simone e Sheyla, e parabéns para a Ju, que me surpreende sempre.

    Esta edição será uma das melhores dos últimos tempos.

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