Henry Alfred Bugalho
Sei do que sou acusado. Nestes últimos dias, vocês viram quantas mentiras disseram sobre mim, de que sempre fui um homem violento, de que havia ameaçado minha mulher várias vezes antes. Mentiras! Mentiras!
Vejo a minha cunhada ali, sentada, me fulminando com o olhar. Foi o ódio dela por mim que me arrastou ao tribunal, a querer minha execução. Eu a entendo, também quereria a mesma coisa se minha irmã fosse assassinada; também adoraria ver meu cunhado morto, se cresse ser ele o culpado.
Mas sou inocente, juro, ouçam-me e julguem por si próprios.
Todos aqui conhecem minha reputação como bibliófilo. Não me estenderei muito sobre o assunto, mas é notório que há na minha biblioteca a primeira edição de “O Contrato Social” de Rousseau, uma Bíblia do século XII, o manuscrito de Die Welt als Wille und Vorstellung de Schopenhauer, entre milhares de outras raridades, inveja para colecionadores ao redor do globo.
Ano passado, empreendi uma viagem de negócios a Istambul; vagando pelas ruas da cidade, adentrei um antiquário. Entre inúmeros artigos interessantes, chamou-me a atenção um códice em grego bizantino, com belíssimas ilustrações e iluminuras, que adquiri pela bagatela de cinqüenta libras.
Em meio a tantas aquisições desta viagem, malas e mais malas, mal me recordava do códice. Mas, há um mês, organizando minha biblioteca, descobri este incrível exemplar e comecei a estudá-lo. Talvez vocês não saibam, mas o grego bizantino não é muito diferente do koiné, o grego bíblico, do qual possuo razoável domínio.
O material não era muito interessante por si, um relato da fundação e queda duma seita herética na Capadócia, entre os séculos X e XII, que acreditava que Jesus fosse, na verdade, um enviado de Satanás. O argumento dos hereges não era dos mais convincentes: por ser Satanás o senhor do mundo material (Jó 1: 7), apenas ele poderia conceder poder a um mortal para curar doenças, multiplicar alimento, caminhar sobre as águas; para sustentar tal crença, eles se baseavam num documento apócrifo, conhecido como “O Evangelho de Iscariotes”, relatando que a traição de Judas Iscariotes havia se fundado na descoberta de que a trajetória do nazareno não passava duma encenação, na tentativa de associá-lo ao Messias das profecias torânicas, e arrebanhar o apoio da ala reformista da comunidade farisaica. Além disto, Judas constatou que havia severas distorções da Lei nas pregações de Jesus, e que muitas delas podiam ser associadas ao culto de Baal.
Apesar de improvável, narra-se que os hereges foram erradicados por uma campanha maciça de assassinatos coordenada pela Igreja Ortodoxa.
Pode parecer frívola esta minha descrição do conteúdo do códice, porém, após dedicar dias examinando o exemplar, deparei-me com uma sentença inusitada, descontextualizada, como se houvesse sido escrita diretamente a mim. Sem adicionar palavras ou omití-las, a tradução da sentença era a seguinte:
"William Turner, na oitava noite de março, virei buscar tua esposa."
O pasmo no olhar de vocês era tal qual o meu assombro. Como meu nome aparecia, em grego bizantino, num códice medieval? E o que significavam tais palavras? Quem viria buscar minha esposa? Por quê?
Tive dificuldades para dormir, atormentado pela macabra profecia. A cada dia que passava, minha angústia crescia, oito de março se aproximava e, em pouco tempo, eu confirmaria ou não a veracidade da ameaça.
Lembro-me bem daquela data, eu e Margareth acordamos cedo e cavalgamos pela propriedade; almoçamos na casa dos meus sogros, passamos a tarde na biblioteca, Margareth lendo Jane Austen, eu jogando xadrez com o sogro. Às sete, retornamos para casa, ceamos e nos recolhemos. Eu estava apaziguado, o dia estava quase concluído e ninguém, nem nada, havia vindo buscar Margareth.
Ouvi o relógio do átrio anunciando, timidamente, que faltavam quinze minutos para a meia noite. Margareth dormia tranqüila, por isto, levantei-me e desci até a biblioteca, procurei pelo códice, mas ele não estava na prateleira onde eu o havia deixado. Isto me enfureceu, ninguém tinha autorização para entrar e mexer nos meus livros; na manhã seguinte, os criados receberiam uma bela reprimenda.
Mas logo avistei o códice caído no canto da biblioteca, aberto. Com ele em mãos, tentei encontrar a passagem e, quem sabe, zombar dela agora. Folheei-o, mas não conseguia encontrá-la. Eu havia marcado a página, mas alguém, deliberadamente, havia feito questão de retirar a indicação.
Foi quando senti uma presença no cômodo. Mesmo a biblioteca estando completamente iluminada, tive a impressão de estar nas trevas, um forte cheiro me cercou, meus pêlos se eriçaram. Involuntariamente, minhas mãos tremiam, o códice balançando nelas. Meus olhos encontraram a passagem, mas esta já não era a mesma.
"William Turner, estou aqui."
Não sei o que me aconteceu, mas, quando voltei a mim, minhas mãos estavam ensangüentadas, o punhal birmanês cravado no peito de Margareth, faltando poucos instantes para a meia-noite. Se fiz algo, fi-lo dominado por alguma força demoníaca. Não sou culpado!
O tribunal não acreditou em palavra alguma de William Turner e o condenou à forca.
Mas o magistrado desejava ver o códice mencionado pelo réu. Um oficial foi até a propriedade do condenado, vasculhou a biblioteca e encontrou o volume.
O juiz Smith havia aprendido koiné com seu pai, padre da Igreja Anglicana e tradutor, nas horas vagas, de versículos bíblicos. Abriu o livro aleatoriamente e, por aquelas ironias do acaso, encontrou a sentença, acompanhada de calafrios, odor de enxofre e trevas:
"Edward Smith, estou aqui."
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