A DESCOBERTA
O dia estava chuvoso quando Américo Nunes imobilizou o pequeno Prius um pouco à frente do rectângulo traçado no asfalto. Antes de sair, ligou o dispositivo móvel de forma a consultar a agenda diária e, acto involuntário, fez uma careta – para além das tarefas de rotina e do relatório do projecto, tinha uma daquelas reuniões difíceis com o Silva. “Bem, não serve de muito ficar a matutar nisso. Depois logo se vê o que é que ele quer desta vez” pensou, ao sair porta fora para a rua fria.
Do outro lado, esperava-o um edifício “Foz” imponente nos seus oitenta metros de altura, os vários pisos apoiando-se como pilha de paralelipípedos rodando ao longo de estrutura helicoidal invisível. De mala na mão esquerda, segurou o guarda-chuva e percorreu rapidamente os metros que o separavam da passadeira. Esperou pelo verde e atravessou.
“Bom dia António” disse quase sem olhar, enquanto cruzava o espaço que o separava do “hall”.
O porteiro sorriu e esboçou um aceno. “Sempre gentil, o engenheiro. Não é como essa geração mais nova, uns abotoadinhos emproados que entram com pressa, sempre a olhar a direito não se dignando a dar um cumprimento”.
Após subir os vinte e dois pisos, chegou finalmente ao escritório e abriu a porta. O seu espaço de quinze metros quadrados tinha uma decoração moderna, a secretária vazia e impecavelmente arrumada, o ecrã de LCD apagado, o “laptop” morto a um canto, por debaixo. Sentou-se e correu as cortinas; parou um pouco, observando a paisagem. Podia ver o manto azul do enorme estuário, os bandos de gaivotas em voo rasante, a superfície sendo sulcada por cacilheiros e pelos “hovercraft” que fazem ligação com o Barreiro. Á direita, filas de automóveis preenchiam o tabuleiro da ponte outrora chamada de “Salazar” e que o pós-revolução renomeou para “25 de Abril”. A mesma ponte que o povo sempre conheceu simplesmente como a “Ponte sobre o Tejo”.
Ligou o computador e ficou por ali mergulhado em trabalho a manhã toda. Tão absorto que nem deu pelo passar do tempo e só desviou os olhos da tela quando um nocturno de Chopin irrompeu do Nokia, interrompendo repentinamente o silêncio. Atendeu.
“Sim? Ah, és tu, Rodrigues. Então já vão a descer? Bem, hoje não vos faço companhia. É o meu dia de vegetariano, desintoxicação…”
Após mais uns minutos, olhou para o relógio digital que marcava “quarto para a uma”, vestiu de novo a gabardine, armou-se do guarda-chuva e saiu. Chegado ao hall, chamou o elevador para levá-lo até ao piso térreo. Após uns segundos, a luz acendeu marcando a chegada da cabine. Porta “D”. Depois de entrar, olhos postos no painel de comandos, preparava-se para carregar no zero quando o espírito analítico e “olho clínico” se aperceberam que algo estava errado.
“Hei... isto não estava ali. Vinte e três? Como é possível?”A atenção fixava-se agora no círculo com os algarismos embutidos.
“Como vinte e três se o prédio só tem vinte e dois andares?” Ele sabia. Após cinco anos de trabalho diário naquele local, conhecia o edifício razoavelmente bem.
Chegou ao átrio ainda intrigado, murmurando para si mesmo: “ Vinte e três? Piso vinte e três?”
O “Ponto V” era um espaço acolhedor com uma estátua gorda de Buda à entrada e as quatro paredes decoradas de cores vivas. Sempre vestido de grupos de pessoas jovens e bonitas a misturar conversas em voz baixa, educada, partilhando o espaço sonoro com a música de fundo instrumental, raramente asiática e quase sempre Jazz. Desfrutou o sabor do bife de seitan chamando mentalmente parvos a todos aqueles que confundem vegetariano com coisa descolorida e fraco sabor. Depois, terminou a refeição com a sobremesa deliciosa: uma bavaroise de amoras recheada com molho de iogurte.
De volta à cabine do elevador, estava já para sair e retornar ao escritório quando decidiu - ia esclarecer a coisa de uma vez por todas. Premiu o botão sentindo imediatamente um leve trepidar, sinal de que o dispositivo se tinha colocado em movimento. Após uns breves segundos, o transporte imobilizou-se e as portas abriram.
Em frente, o “hall”. Similar, demasiado igual ao que tinha no seu piso. O mesmo candeeiro, os mesmos quadros com “marketing” de empresa, o mesmo tapete turco e, ao balcão, uma alma gémea de Sara, a secretária de cabelo loiro curto, cortado “à escovinha”, a teclar rapidamente. Consultava algo e o telefone fora do bocal era indício de que, algures, um cliente esperava por resposta.
Estranho. Como podia estar ela ali se a tinha acabado de avistar no piso de baixo? Sem saber bem o que fazer, atirou um “Olá Sara.” que ela não ouviu. Indiferente à sua presença, desviou os olhos da tela e a mão direita voltou a pegar no bocal.
Aproximou-se mais e foi então que reparou na data: Quinze de Janeiro de 2009. Amanhã.
O PLANO É ELABORADO
O insólito só o é quando ainda não totalmente absorvido pelas malhas da rotina. Embora não obtivesse qualquer explicação racional, habituou-se a ter por certa aquela viagem ao futuro. As possibilidades eram limitadas – não era visto nem podia interagir, era mero espectador. Além disso, o tempo de que dispunha em cada visita era igualmente escasso. Após cerca de trinta minutos, desvaneciam-se os detalhes, todas as imagens. Ficava a sós com as várias divisões de paredes brancas e nuas e a porta do elevador que haveria de o trazer de volta. Mas nada disso o impediu de passar a fazer as visitas rotineiramente. Tornara-se um vício.
As coisas na empresa pioraram. Primeiro foi o relatório de projecto que o Silva “chumbou” e que o mesmo “Silva” mandou que fosse alterado. Que enviaram então ao cliente e que o cliente não aceitou. Seguiram-se outros desastres. Sempre que o chefe metia a colher, a coisa descambava. As reuniões tornaram-se insuportáveis. Estava já para enviar o currículo para outras empresas quando lhe surgiu a ideia. Porque não tinha pensado nisso antes? Se tinha aquela viagem para o “amanhã”, apesar de ser um mero observador, poderia fazer hoje que o amanhã incluísse algo digno de ser visto. O plano que nasceu nesse preciso momento era muito simples: Sabendo que o sorteio do Euromilhões é efectuado ao fim da tarde de sexta-feira, Sábado bem cedo voltaria ao escritório e obteria os números certos. Depois, bastava deixar sobre a secretária o pequeno “Post It” com a chave mágica. Se fizesse isso, sabia que teria então o tempo necessário para fazer a viagem na sexta e descobrir os números certos antes de jogar.
O PLANO É COLOCADO EM PRÁTICA
No dia do sorteio, efectuou alguns preparativos, o mais ousado dos quais foi materializado pela apresentação de “Powerpoint” com montagens do Silva actuando com outros espécimes do mesmo sexo e experimentando as posições menos decorosas. Alojou-a no servidor e providenciou para que fosse enviada para os postos de trabalho da empresa no fim do processamento “batch” de Domingo.
Passou o resto da manhã a fingir que estava trabalhando. Um pouco antes da hora de almoço, sentiu que estava chegado o momento e dirigiu-se então para o elevador. Tudo estava certo, o botão vinte e três, aquele que apenas ele via, esperava-o e, mal tocado, fez o mecanismo obedecer às suas ordens. No entanto, ao chegar ao seu escritório, esperava-o uma secretária vazia – nem sinal de “Post It”. Desanimado e sem entender o que se tinha passado, decidiu-se pelo almoço.
Atravessou a estrada ainda intrigado “Que raio, o que se terá passado? Bem, mas ainda estou a tempo, ainda há tempo. É só entrar de novo no servidor para retirar a coisa. Ninguém descobrirá e para a semana volto a tentar…”
Mais intrigado ficou o condutor de TAXI com a visão: o maluco atravessava no vermelho, alheio a tudo, mesmo em frente à grelha do seu automóvel. A colisão foi inevitável.
Três horas e quatro costelas partidas depois, ei-lo que acorda e pergunta aos seres de bata branca e máscara:
“Onde estou? Que me aconteceu? Que dia e hoje?”
A resposta veio, calma e segura.
“Sabe… Teve muita sorte. Muitos foram desta para melhor por muito menos. Que raio lhe deu para atravessar no vermelho e nem reparar no trânsito? Teve realmente muita sorte. Se tudo correr bem, terá alta já na terça-feira. Da parte da tarde.”
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