Breves reflexões sobre o ofício da tradução
Eu devo ser um dos piores tradutores do mundo.
Não digo isto por alguma razão qualquer, seja porque não domino a língua de origem ou de destino do texto a ser traduzido, ou porque não me esforço por tentar recriar o sentido de uma palavra, sentença, ou ideia.
Digo-o apenas porque simplesmente não acredito no que faço.
Para mim, não existe tradução.
Desde o nível mais fundamental, ou seja, do pensamento à comunicação deste pensamento, até o último grau nesta escala, isto é, a tradução dum texto de um idioma para outro, a passagem é sempre problemática.
Comecemos pelo fim desta cadeia.
Temos um texto literário num idioma que não nos pertence. Por uma razão qualquer, queremos vertê-lo para nossa língua nativa.
É neste salto entre a origem e o destino que encontramos o primeiro abismo.
Toda língua possui sua história, sua trajetória, seu contexto social e geográfico. Se toda língua se desenvolvesse de maneira semelhante, não haveria diferença alguma entre o português de Portugal, do Brasil, de Angola ou Moçambique, por exemplo. Estas quatro variantes do português são a mesma língua, mas todas possuem expressões, palavras e sentidos compreensíveis apenas no interior de suas comunidades linguísticas. Histórias diferentes e povos diferentes conduzem a variações e desvios nas línguas.
Primeiro, pensamos apenas no português, mas imaginemos as diferenças que existem entre o russo, o chinês, o tcheco e o português. Não estamos falando apenas de Histórias nacionais diferentes, falamos agora dum contexto linguístico, social e cultural totalmente diferente do nosso. As variações não residem mais em apena palavras, expressões ou sentidos, mas sim em toda uma construção sintática, morfológica, filológica e, às vezes, alfabética.
Se para um brasileiro compreender uma expressão de Portugal é necessário, por vezes, um esforço para se pôr no registro cultural daquele país, qual não é o esforço requerido para se pôr no registro dum povo tão distante culturalmente quanto a China? Como traduzir com propriedade frases, expressões e ideias que só fazem sentido no interior dum contexto histórico e social que não nos pertence?
A resposta parece ser simples: para um tradutor, não basta apenas conhecer a língua de origem, mas um bocado da História do país falante desta língua, entender sua cultura, suas especificidades, sua singularidade.
Então, daremos um passo atrás.
Pensemos no trabalho individual e solitário do autor, que através da escrita transmite seus pensamentos, preocupações, anseios, medos e devaneios.
Qualquer um que já se deteve diante duma folha em branco reconhece a grande barreira que existe entre pensamento e escrita. Muitas vezes, em momentos de reflexão, surge-nos no livro da mente frases perfeitas, sentenças irretocáveis e parágrafos ou páginas inteiras dignas de um mestre.
No entanto, assim que elas são transportadas para a folha de papel, muitas destas ideias se revelam imperfeitas, ou tolas, ou ridículas. Não é a toa que boa parte do trabalho de um escritor é na hora de revisar, de cortar, de remendar sua obra. Basta acompanharmos a biografia de qualquer grande escritor e veremos que quase todos duelavam com sua obra, refazendo-as, reescrevendo-as, às vezes até renegando-as.
A criação da obra literária não é uma viagem por mares tranquilos, mas sim um embate constante e interminável, que chega até a perdurar após a publicação das mesmas.
Qualquer autor sabe que, entre os pensamentos e a escrita, há também um abismo.
Como suprir esta lacuna, nós nos perguntamos? Como traduzir com propriedade este conflito que surge com o primeiro pensamento do autor e se manifesta na palavra escrita?
Também neste caso, a resposta parece ser simples: basta conhecermos a biografia do autor; basta lermos o conjunto de sua obra e como ele se relacionava com a cultura de sua época.
Que nós retrocedamos um passo, então.
Todo pensamento deriva duma impressão sensorial. Cotidianamente, vemos, ouvimos, sentimos, degustamos, somos afetados por inúmeras sensações.
Não creio que devamos empreender uma investigação profunda sobre o processo cognitivo do ser humano, se nossa mente é uma tabula rasa, vazia de conteúdos e que vai sendo construída com o tempo, ou se nós possuímos várias faculdades que vão sendo alimentadas com nossas vivências, mas o que importa é que a maior parte do nosso conhecimento surge através dos sentidos.
No entanto, nosso conhecimento do mundo é parcial. Nossos olhos, ouvidos, mãos, palato, nariz nos mostram facetas da realidade. Se vemos o sol nascente, por exemplo, percebemos sua cor e as tonalidades do céu, sentimos seu calor, mas não temos um conhecimento da totalidade do que é o sol. Acercamo-nos deste objeto dentro de nossas limitações sensoriais.
Portanto, entre a realidade e nossos pensamentos também existe um abismo, e este é realmente intransponível.
Não estamos falando de algo como uma coisa em-si, ou a essência das coisas, estamos falando de algo mais simples e bem distante de toda e qualquer metafísica: nosso conhecimento é fragmentado, temos apenas acesso a parcelas da realidade.
Acompanhe então todo o processo feito por nós:
a - da tradução ao texto de origem;
b - do texto de origem ao autor deste texto;
c - do autor do texto aos pensamentos do autor;
d - dos pensamentos do autor às vivências deste autor;
e - das vivências do autor à realidade.
Cinco etapas que nos afastam do sentido, cinco decisões totalmente arbitrárias, comprometidas e duvidosas. Quatro destas etapas ocorrem através do autor e do processo de escrita, a última se dá pelas mãos do tradutor, completamente distante e alheio à gênese da obra literária.
Podemos aceitar que um autor diga: “era isto que eu pretendia mostrar”; contudo, é muito mais complicado aceitarmos um tradutor asseverando: “era isto que o autor pretendia mostrar”.
A verdadeira e única tradução só poderia ocorrer se o tradutor pudesse sentir e receber as mesmas impressões do autor, conceber os mesmos pensamentos e transportá-los para sua língua nativa.
É justamente por isto que traduções próprias dos autores, ou colaborativas, costumam ser mais fidedignas, mas, para tanto, o autor precisa ter um domínio razoável tanto da língua de destino quanto da de origem. Samuel Beckett escreveu seus romances em francês, mas ele possuía competência e autoridade para assistir à tradução de, ou ele próprio traduzir, suas obras para o inglês, sua língua nativa. Nabokov concebeu sua obra-prima, “Lolita”, em inglês, mas se encarregou de traduzi-la para o russo, sua língua materna e, neste processo, descobriu os grandes obstáculos desta tarefa. Além disto, ao comparar a tradução para o russo com o original em inglês, ele começou a identificar os defeitos e imprecisões do texto original.
No conto “Pierre Menard, o autor de Quixote”, Jorge Luis Borges concebe um evento insólito: Pierre Menard, um poeta francês, decide escrever o livro “Dom Quixote”. Mas Menard não pretende escrever uma versão de Dom Quixote, uma releitura, ou uma atualização, Menard deseja escrever o “Dom Quixote”. Para tanto, ele começa a pesquisar o período histórico no qual viveu Cervantes e o castelhano daquela época, ou melhor, tornar-se Miguel de Cervantes.
O ofício do tradutor não é diferente, só que, ao invés de escrever a mesma obra, o tradutor é aquele que deveria escrever aquela obra em outro idioma.
A verdadeira tradução só seria possível se ela fosse como um decalque do texto, uma correspondência perfeita, palavra por palavra, sentido por sentido, intenção por intenção, só que na língua de destino.
Henri Bergson afirma que mesmo se reuníssemos todas as traduções existentes dum único poema em todos os idiomas, não conseguiríamos esgotar as possibilidades de tradução e de interpretação deste poema original. Vou até mais longe nesta direção: mesmo que reuníssemos todas as traduções dum texto literário qualquer, não esgotaríamos as possibilidades de tradução, tampouco eliminaríamos as fissuras entre o original e a tradução.
Mas também não se iluda, acreditando que defendo uma relativização absoluta e que toda tradução seja igualmente malfadada.
Existem sim traduções melhores ou piores, mas todas, sem exceção, tateiam em meio à escuridão dos significados, das falhas interpretativas, mas alguns tradutores já se habituaram às trevas e se movimentam melhor, outros ainda estão perdidos em meio ao breu.
As boas traduções são aquelas que melhor disfarçam a traição à origem, as que conseguem simular ser o que não são.
segunda-feira, 9 de março de 2009
A Arte de Trair
por Henry Bugalho
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