Parte 1 – Na Trilha da Marmota
Vitor acordou com a cabeça doendo. Sua primeira sensação foi a de fome, uma fome que nunca sentira antes. Rolou um pouco até acordar de verdade, e ao fazer isso, ouviu barulhos estranhos. Sentando-se ereto, olhou ao redor e viu que os barulhos tinham sido feitos por folhas sendo amassadas por seu corpo. Vitor ficou sem palavras ao notar que estava no meio de um bosque, tão denso que não dava para ver o céu.
Estava pronto para gritar, quando viu um animal, uns dois metros à sua frente, lhe observando calmamente.
Vitor, apesar de ser novo, sabia que aquilo era um furão. Esse olhava para Vitor com o que parecia ser o maior dos interesses.
- Bom dia –, disse Vitor, mas depois se arrependeu. Sua garganta estava seca, e falar a fizera doer. Além disso, sua dor de cabeça havia piorado.
- Mas que “bom dia” coisa nenhuma! -, exclamou o furão, com uma voz comicamente grave, que lembrou a Vitor a voz do Darth Vader, só que sem a máscara. Talvez fosse melhor dizer que lembrava a voz de James Earl Jones, porém Vitor tinha apenas 12 anos, e isso ele não sabia.
Assustado com a aparente irritação do Furão (e era assim que Vitor pensava nele agora, com um “F” maiúsculo), Vitor engatinhou timidamente até o animal.
- Atrasado para o quê? -, perguntou ele.
- Ora bolas, para a sua festa, no Grande Salão.
Ainda confuso, além de faminto, Vitor não protestou. Sua cabeça doía, sua garganta ardia e seu estômago implorava por comida. Ele simplesmente se levantou. “Vamos então”, disse ele.
O Furão assentiu e apontou para um espaço entre duas árvores, marcado com uma pedra.
- Vamos lá.
Vitor seguiu o Furão pela trilha.
- Que lugar é esse? -, perguntou Vitor, após alguns minutos de caminhada.
- É a Trilha da Marmota -, respondeu a voz de Darth Vader sem a máscara.
- Certo. E por que chamam de “Trilha da Marmota”?
- Ora, por que um dia uma marmota passou por aqui. Que pergunta!
- Ah sim. Você tem alguma comida aí?
- Espere até chegarmos ao Grande Salão, lá terá muita comida para você.
Isso era mentira. Por algum motivo, Vitor soube disso na hora, mas não se importou. Não sabia por quê.
Continuou seguindo a Trilha da Marmota, atrás do Darth Furão. E com fome.
Parte 2 – A Folha Que Fala
Depois de algum tempo de caminhada (Vitor achou que foram horas, mas poderiam ter sido dias que ele não saberia, sem ver o céu), o Furão parou e correu para a lateral da Trilha.
Vitor o viu pegar uma folha no meio de um aglomerado de outras folhas após algum tempo de procura. Vitor também o viu bradar uma exclamação de triunfo ao encontrar aquela folha em especial (que para Vitor parecia como todas as outras folhas do bosque), a qual ele olhava fixamente.
- Furão -, chamou Vitor depois de alguns minutos.
O Furão nada fez.
- Furão! – Daquela vez tinha sido um grito.
O Furão saiu de seu transe, aparentemente alarmado.
- Temos que ir, temos que ir – disse ele, a voz ligeiramente mais aguda.
- Ok. Mas era você quem estava nos fazendo perder tempo olhando para aquela folha.
O Furão, que já tinha recomeçado a andar, parou.
- Não era apenas uma folha, era uma Folha que Fala, e ela nos disse para nos apressarmos.
Espantado, Vitor disse ao Furão que não ouvira nada.
- Mas é claro que não ouviu, estava tentando não ouvir. Existem muitas Folhas que Falam pelos bosques, mas por algum motivo as pessoas não querem ouvi-las. Acho que é por que as pessoas em geral são burras.
Vitor o olhou, sem entender muito.
E com isso, continuaram.
Parte 3 – Mais um pouco sobre o Grande Salão. O alerta do Furão.
- Como é esse Grande Salão?
Tinham andado mais uns vinte minutos depois de terem encontrado a Folha que Fala. A fome de Vitor batia como ondas em seu estômago, sua voz rouca pela sede.
O Furão parou, ofegando.
- É um bom lugar. Sim, acho que essa é uma boa descrição. É um bom lugar, e quanto mais rápido você se apressar, mais cedo chegaremos lá. Além do mais, não estamos seguros.
E continuaram pela Trilha.
“Não estamos seguros”. Aquilo havia ficado na mente de Vitor. Uma frase pequena, porém suficiente para dar-lhe forças para se apressar.
Suando, Vitor perguntou ao Furão o que ele quis dizer com “não estamos seguros”.
- Espero que não tenhamos que descobrir – respondeu o Furão, sem parar nem se virar para trás.
- O que isso quer... -, começou Vitor, quando um barulho tão alto que parecia vir de todas as direções o fez parar.
- Bem, mas que droga -, disse o Furão, fazendo um movimento cômico com as patas dianteiras.
O barulho ecoou novamente e pela primeira vez desde que acordara, Vitor ficou verdadeiramente apavorado.
Parte 4 – O Urso. O riacho.
O Urso surgiu à frente deles, rugindo um som que Vitor nunca havia escutado na vida. Ele deveria ter uns três metros e meio de altura, e era negro. Seus dentes pareciam lâminas. O Furão o encarou com uma expressão séria.
- Você não deveria estar aqui.
A isso, o Urso respondeu rugindo mais alto e mais próximo do Furão, fazendo os pêlos desse último se arrepiar.
- Vamos, garoto, vamos embora.
E caminhou, passando ao lado do Urso, e parando às suas costas.
Vitor estava congelado. Olhou para o Urso, e tremeu.
- Eu... eu não posso. -, gaguejou ele.
- Sim garoto, você pode. Venha até mim, devagar. E não encoste nele, por tudo que você considera sagrado, não encoste nele!
Cansado, com medo e faminto, Vitor fechou os olhos e pôs-se a andar. Lágrimas caíam de seus olhos quando ele passou pelo Urso, e nos anos que se seguiram, brotaram do lugar onde elas caíram duas Árvores, que espalhariam muitas Folhas que Falam por todo aquele bosque.
- Isso, bom garoto. Siga minha voz.
Ao passar pelo Urso, que agora rugia para o espaço vazio onde estava segundos atrás, Vitor abriu os olhos e correu para o Furão, que assentiu com a cabeça e começou a correr também.
O Urso, como que se acordasse de um transe, soltou o maior de seus rugidos, se virou, e os seguiu.
- Vamos garoto, corra!
Vitor correu, como nunca havia corrido. Os passos do Urso ecoavam de trás deles, e seu rugido praticamente os cercava.
Correndo de olhos fechados, Vitor quase trombou com o Furão, parado diante de um riacho.
Sobre as águas, o céu era visível, e Vitor viu que era noite.
Os sons do Urso se aproximaram.
- Corra, e pule ali! -, disse o Furão, apontando para um arbusto, próximo à margem do riacho.
- Mas, e você?
- Vá, que eu te encontrarei.
Vitor correu na direção do arbusto. Antes de pular, olhou para trás, e viu o Furão frente a frente com o Urso.
- Vamos lá então.
E pulou no arbusto, para dentro da escuridão.
Parte 5 – Do Lado de Fora
A mulher chorando olhou para a gaveta aberta pelo médico.
- Sim, é ele. – E explodiu num choro, menos decoroso do que estava chorando antes.
O médico a encarou, e a seu marido, um homem sério, de terno preto, que tentava conter seus sentimentos.
- Ele... sofreu? -, perguntou o homem.
- Eu não sei dizer, senhor.
Aquilo, claro, era mentira. O garoto tinha sido encontrado sob um arbusto. O resgate o havia encontrado depois de quatro dias perdido naquele bosque. Ele havia morrido de fome, e foi uma sorte que isso tenha acontecido próximo ao riacho, já que o bosque é muito denso, e existia a chance de nunca o encontrarem.
Então sim, ele havia sofrido.
Um psicólogo acompanhou o casal até uma sala ao lado do necrotério.
O médico deu uma última olhada para o pequeno Vitor, deitado em sua gaveta.
- Pobre garoto -, disse ele, e fechou a gaveta.
Epílogo – O Grande Salão
Ele acordou no meio de uma escuridão total. Estava assustado
- Não tenha medo -, disse o Furão, que agora não era mais o Furão.
Chorando, ele pergunta o que tinha acontecido com o Urso.
- Ele era mau, mas não vai mais nos incomodar -, respondeu o Ser iluminado, que era como um farol naquela escuridão.
Ele assentiu.
O Ser apontou para um ponto brilhante, mais brilhante que si mesmo, um pouco distante deles.
- Preparado para a sua festa?
Ele disse que sim. E naquele momento, não tinha mais fome.
- Então vamos lá.
E foram juntos, em direção a luz, para o Grande Salão.
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
O Grande Salão
por Pedro Faria
1 comentário
1 comentários:
Muito bom. Inesperada a forma como soube conduzir a narrativa.
Postar um comentário