Don Juan Manuel
Trad.: Henry Alfred Bugalho
Conto VII
O que aconteceu a uma mulher chamada senhora Truhana
Certa vez, Conde Lucanor conversava com Patronio deste modo:
— Patronio, um homem me propôs algo e também me disse a forma como consegui-lo. Assegurou que tem tantas vantagens que, se com a ajuda de Deus tudo ocorrer bem, seria para mim de grande utilidade e proveito, pois os benefícios se unem uns aos outros, de tal forma que, no final, seriam muito grandes.
Então, contou a Patronio tudo que sabia. Após ouvi-lo, Patronio respondeu o conde:
— Senhor Conde Lucanor, sempre ouvi dizer que o prudente se atém às realidades e desdenha as fantasias, pois muitas vezes a quem vive destas costuma ocorrer o mesmo que se sucedeu à senhora Truhana.
O conde perguntou o que havia acontecido a ela.
— Senhor conde, disse Patronio, havia uma mulher que se chamava senhora Truhana, que era mais pobre do que rica, e que, indo um dia ao mercado, levava um jarro de mel sobre a cabeça. Enquanto seguia pelo caminho, começou a pensar que venderia o mel e que, com o que lhe dessem, compraria um bocado de ovos, dos quais nasceriam galinhas e que logo, com o dinheiro que lhe dessem pelas galinhas, compraria ovelhas, e assim iria comprando e vendendo, sempre com lucro, até que se visse mais rica do que todas as suas vizinhas.
Logo pensou que, sendo tão rica, poderia arranjar um bom casamento a seus filhos e filhas, e que iria acompanhada pela rua por genros e noras, e pensou também que todos comentariam sua boa sorte, pois havia conseguido tantos bens, mesmo que houvesse nascido muito pobre.
Assim, pensando nisto, começou a rir com muita alegria por causa de sua boa sorte, e rindo, rindo, deu um tapinha na própria testa, o jarro caiu no chão e se rompeu em mil pedaços. Senhora Truhana, quando viu o jarro quebrado e o mel derramado pelo chão, começou a chorar e a se lamentar amargamente, porque havia perdido todas as riquezas que esperava obter com o jarro, se este não houvesse se quebrado. Assim, porque pôs toda sua confiança em fantasias, não pôde fazer nada do que tanto esperava e desejava.
Se quereis, senhor conde, aquilo que dizeis e pensais sejam realidade algum dia, procura sempre que se tratem de coisas razoáveis e não fantasias, ou imaginações duvidosas e vãs. E quando quiserdes iniciar algum negócio, não arrisqueis algo mui caro, cuja perda vos possa causar desgosto, com o intuito de obter um proveito baseado apenas na imaginação.
O que Patronio contou agradou muito o conde, que agiu de acordo com a história e, assim, se saiu muito bem.
E como Don Juan gostou deste conto, escreveu-o neste livro e compôs estes versos:
Em realidades certas podeis confiar,
Mas das fantasias deveis vos afastar,
***
Conto XIII
O que aconteceu a um homem que caçava perdizes
Outra vez, o Conde Lucanor conversava com Patronio, seu conselheiro, e lhe disse:
— Patronio, alguns nobres muito poderosos e outros nem tanto, às vezes, causam danos a minhas terras ou a meus vassalos, mas, quando nos encontramos, eles me pedem desculpas, dizendo-me que fizeram-no obrigados pela necessidade, muito a contragosto e sem poderem evitar. Como eu gostaria de saber o que devo fazer em tais circunstâncias, suplico-vos que me deis vossa opinião sobre este assunto.
— Senhor Conde Lucarno, disse Patronio, o que haveis me contado, e sobre o qual me pedis conselho, parece-se muito com o que ocorreu a um homem que caçava perdizes.
O conde lhe pediu que contasse a história.
— Senhor conde, disse Patronio, havia um homem que estendeu suas redes para caçar perdizes e, quando já apanhado bastantes, o caçador voltou para junto da rede onde estavam suas presas. Na medida em que as recolhia, tirava-as da rede e as matava e,enquanto fazia isto, o vento, que batia em cheio em seus olhos, o fazia chorar. Ao ver isto, uma das perdizes, que estava presa na malha, começou a dizer a suas companheiras:
— Olhem, amigas, o que acontece a este homem! Ainda que nos mate, olhem como ele se condói por nossa morte e, por isto, chora!
Mas outra perdiz que avoava por ali, mais velha e mais sábia do que a outra que havia caído na rede, respondeu-lhe:
— Amiga, dou graças a Deus porque me salvei da rede e agora peço a Ele que salves a mim e a todas minhas amigas dum homem que busca nossa morte, mesmo que dê a entender com lágrimas que muito se condói.
Vós, senhor Conde Lucanor, evitai sempre aqueles que vos causam dano, mesmo que dêem a entender que sentem muito; mas se algum vos prejudica, sem buscar vossa desonra, e se o dano não for muito grave para vós, se se trata duma pessoa à qual deveis favores, e que além disto foi forçado a isto pelas circunstâncias, eu vos aconselho que não se importeis demais, mas deveis procurar que tal não se repita tão freqüentemente que chegue a macular vosso bom nome ou vossos interesses. Mas se vos prejudica voluntariamente, rompei com ele para que vossos bens e vossa fama não se vejam lesionados ou prejudicados.
O conde viu que este era um bom conselho que Patronio lhe dava, seguiu-o e tudo ficou bem.
E vendo don Juan que o conto era bom, ordenou pô-lo neste livro e fez estes versos:
A quem te faz mal, mesmo que seja para ti pesar,
Busca sempre um modo para poder dele se afastar.
Biografia
Don Juan Manuel (1282-1348) nasceu no Castelo de Escalona, na província de Toledo. Por ser filho do Infante Don Manuel de Castela (Senhor de Escalona e de Peñafiel) e de Dona Beatriz de Saboya, era sobrinho do rei Alfonso X, o Sábio, e neto de Fernando III, o Santo. Herdou de seu pai o grande Senhorio de Villena, recebendo os títulos de Príncipe, Senhor e Duque de Villena.
Foi educado como um nobre, adestrado em artes como equitação, caça e esgrima, aprendeu latim, História, Direito e Teologia. Literariamente, sua formação incluiu a leitura de diversos poemas clericais (Livro de Alexandre, Livro de Apolônio...), os tratados de Raimundo Lúlio, a obra de Alfonso X (especialmente, a História da Espanha), vários livros doutrinais e coleções de frases, provérbios e ditos de sábios, traduzidos de línguas orientais, ou do latim, para o castelhano (Calila e Dimna, Sendebar...), etc.
Aos oito anos, perdeu os pais, por isto, desde muito jovem, pôde dispor do amplo patrimônio de sua família. Aos doze anos, iniciando uma atividade que o acompanharia por toda a vida, participou na guerra para repelir o ataque dos mouros de Granada contra a Múrcia.
Casou-se três vezes, escolhendo suas esposas por conveniência política e econômica e, quando teve filhos, esforçou-se para desposá-los com pessoas pertencentes à realeza.
Don Juan Manuel se converteu em um dos homens mais ricos e poderosos de sua época e, além de manter ele próprio um exército de mil cavaleiros, chegou a cunhar sua moeda própria por um tempo, assim como faziam os reis.
O autor de “O Conde Lucanor” dividiu seus esforços, durante toda sua vida, entre suas atividades como escritor e nobre cavaleiro. Ao seu redor, houve certas críticas sobre sua vocação literária, pois se pensava que um nobre de tão alto prestígio não deveria se dedicar a tais atividades. O prazer que encontrava na escrita e a utilidade que via nela para os outros o levaram a seguir com sua atividade literária.
Don Juan Manuel teve disputas constantes com seu rei. Na época, o trono de Castela esteve ocupado por dois monarcas que até chegaram a traçar planos para matá-lo: Fernando IV e Alfonso XI. No entanto, o último buscou a fidelidade de Don Juan Manuel ao pedir a mão de sua filha, Constanza. Finalmente, o rei rejeitou o matrimônio já arranjado e encarcerou a jovem no Castelo de Toro.
A luta entre o rei e Don Juan Manuel se prolongou por uma década, e houve pelo menos duas ocasiões em que este quase chegou a cair nas mãos do primeiro. O rei também se opôs ao transporte de Constanza a Portugal para se casar com o infante Don Pedro de Portugal.
A necessidade de paz interna para enfrentar o rei de Marrocos e a mediação de Dona Juana Núñez, sogra de Don Juan por seu terceiro casamento, fez com que o rei devolvesse a Don Juan seus bens e honrarias em 1337, pondo fim à inimizade, que se consolidou definitivamente com a autorização para o casamento de Constanza e, até 1340, quando ambos se aliaram contra os muçulmanos na batalha de Salado, tomando-lhes a cidade de Algeciras.
Após estes acontecimentos, o infante Don Juan Manuel deixou a vida política e se retirou para a Múrcia, onde passou seus últimos anos entregue à literatura. Orgulhoso de suas obras, decidiu reuni-las todas num único volume, que desapareceu queimado num incêndio.
0 comentários:
Postar um comentário