Queria escrever-lhe. Colocar uma folha de papel branca, sem linhas nem quadrados, em cima da secretária ou num canto da mesa da cozinha. Ao lado da folha, a sua fotografia. Aquela em que está, de mãos sujas, segurando o Jeremias.
Jeremias, o nosso gato cinzento, enorme.
Queria, pois, escrever-lhe uma carta sob o seu olhar. O olhar com que me olhava, segurando o gato, num fim de tarde de Maio. Sorria na fotografia. Sorria-me. Fui buscar uma caneta. Uma qualquer, desde que escrevesse em azul. Um azul de tinta, muito azul. Um azul como o azul do céu do começar a noite naquele Maio em que a fotografei segurando o gato com as mãos sujas de farinha.
Porque desceu ela a escada em vez de entrar em casa?
Nada nunca mais foi. Desde esse dia de Maio, nunca nada mais foi.
Queria, pois, escrever-lhe uma carta sob o seu olhar. O olhar com que me olhava, segurando o gato, num fim de tarde de Maio. Sorria na fotografia. Sorria-me. Fui buscar uma caneta. Uma qualquer, desde que escrevesse em azul. Um azul de tinta, muito azul. Um azul como o azul do céu do começar a noite naquele Maio em que a fotografei segurando o gato com as mãos sujas de farinha.
Porque desceu ela a escada em vez de entrar em casa?
Nada nunca mais foi. Desde esse dia de Maio, nunca nada mais foi.
Era preciso que eu lhe escrevesse. Eu queria escrever-lhe. Já tinha a folha de papel e a caneta que escrevia naquele tom de azul.
O que eu escrevi foi uma carta assim.
Minha querida
Tenho tantas saudades!
Nunca consegui perceber o que aconteceu naquela tarde.
Tu fazias bolos. Vi a massa estendida sobre a larga mesa da cozinha.
O compartimento onde agora te escrevo e que nessa tarde atravessei em direcção ao jardim para fotografar as roseiras floridas.
Lembras-te?
Já lá em baixo, entre os cliques da máquina, ouvi o teu zangar-te com o gato. O Jeremias saltara sobre a mesa. Ouvi-te descrever o que acontecia:
- Olha o que fizeste!A massa toda salpicada com as tuas patas, Jeremias!
Dizias,imitando um zangado que era um pobre imitado.
Assomaste à porta que derramava vidrinhos sobre o jardim. Trazias o Jeremias abafado nos teus braços. Do cimo da escada, gritaste ao quase escuro do jardim:
- Olha, amor, o Jeremias anda a ajudar. Tiras uma foto?
E sorrias. Este sorriso com que estás na fotografia.
Depois, só tu o saberás contar. Por isso te escrevo. Para que me contes. Para que me expliques o que até hoje ninguém me soube, ou sequer tentou, explicar. E eu não entendo. Continuo sem entender como é que tu fazias bolos, sorrias, pegavas no Jeremias, pedias fotografias e, um instante depois, coisa de no mesmo instante de eu registar o teu sorriso, tu já não sorrias, o Jeremias miava atordoado e os bolos queimavam-se na cozinha.
Foi muito depressa, sabes? Eu nunca percebi.
Entro na cozinha e...
Desde esse dia de Maio, nunca nada mais foi. E eu tenho tantas saudades!Eu sei que a carta era uma fantasia minha. Uma forma de acalentar a saudade. Gritar a precariedade deste estar vivo que tanto desatentamos. Deixei-a na mesa da cozinha onde a escrevi, tal qual a acabei. A folha escrita naquele tom de azul aberta sobre a mesa.
Hoje, ainda nem há nada, relancei o olhar sobre o papel enquanto mordiscava um scone.
A folha estava escrita numa cor verde-água.
Debrucei-me mais.
A caligrafia não era a minha. Reconheci a letra e arrepiei-me.
Percorri cada palavra, agitado e incrédulo.
Minha querida
Tenho tantas saudades!
Nunca consegui perceber o que aconteceu naquela tarde.
Tu fazias bolos. Vi a massa estendida sobre a larga mesa da cozinha.
O compartimento onde agora te escrevo e que nessa tarde atravessei em direcção ao jardim para fotografar as roseiras floridas.
Lembras-te?
Já lá em baixo, entre os cliques da máquina, ouvi o teu zangar-te com o gato. O Jeremias saltara sobre a mesa. Ouvi-te descrever o que acontecia:
- Olha o que fizeste!A massa toda salpicada com as tuas patas, Jeremias!
Dizias,imitando um zangado que era um pobre imitado.
Assomaste à porta que derramava vidrinhos sobre o jardim. Trazias o Jeremias abafado nos teus braços. Do cimo da escada, gritaste ao quase escuro do jardim:
- Olha, amor, o Jeremias anda a ajudar. Tiras uma foto?
E sorrias. Este sorriso com que estás na fotografia.
Depois, só tu o saberás contar. Por isso te escrevo. Para que me contes. Para que me expliques o que até hoje ninguém me soube, ou sequer tentou, explicar. E eu não entendo. Continuo sem entender como é que tu fazias bolos, sorrias, pegavas no Jeremias, pedias fotografias e, um instante depois, coisa de no mesmo instante de eu registar o teu sorriso, tu já não sorrias, o Jeremias miava atordoado e os bolos queimavam-se na cozinha.
Foi muito depressa, sabes? Eu nunca percebi.
Entro na cozinha e...
Desde esse dia de Maio, nunca nada mais foi. E eu tenho tantas saudades!Eu sei que a carta era uma fantasia minha. Uma forma de acalentar a saudade. Gritar a precariedade deste estar vivo que tanto desatentamos. Deixei-a na mesa da cozinha onde a escrevi, tal qual a acabei. A folha escrita naquele tom de azul aberta sobre a mesa.
Hoje, ainda nem há nada, relancei o olhar sobre o papel enquanto mordiscava um scone.
A folha estava escrita numa cor verde-água.
Debrucei-me mais.
A caligrafia não era a minha. Reconheci a letra e arrepiei-me.
Percorri cada palavra, agitado e incrédulo.
Depois de ler, sosseguei.
Dizes-me que naquele anoitecer, me vinhas oferecer um scone acabado de sair do forno, que o gato saltou assustado com o flashe o que te fez desequilibrar. Dizes que, ainda deitada nos degraus da escada, me tentaste falar, mas já só dizias as palavras que eu não sabia ouvir.
Pedes-me que fique descansado, que estás bem. E no final, antes de me enviares beijos, escreves: toma conta do gato Jeremias.
Guardei a carta numa pasta.
Lá fora as rosas estão lindas e o sol de Verão acaricia o pêlo do Jeremias estirado no cimo da escada em frente da porta da cozinha.
adaptação do texto publicado aqui
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